Poemas de Marly de Oliveira

Leia os poemas "sem título" de Marly de Oliveira
01/04/2003

Não acreditas em nada não-visível,
mas tenho um corpo e um “sistema de objetos”,
um quarto com paredes, mesa, uma garrafa,
um copo, onde se pode beber o vinho
caseiro, para esquecer aquilo que desperta
apenas o efêmero, sem se dar ao
esforço de pensar, ainda que me sinta
sempre, depois de tudo,
um pouco abandonada, a verdade
abrindo os olhos no silêncio,
já que entre mim e ti há o oceano
do que não sabes, do que não sei,
e o que escrevo não passa de uma invenção,
artifício, carência, para que leias
sem entender, como carta sem endereço,
amor sem direção, paixão sem objeto,
enquanto a morte se avizinha
pressionando os instintos, o apego à vida,
à terra, ao nosso lado animal e mineral;
uns, vestidos de púrpura, outros de linho cru,
com o mesmo destino comum,
onde inúteis serão artífices e lapidários,
se não houver ressurreição,
se houver apenas aquela transgressão
que Donne atribuiu em versos célebres:
ao corpo, qualidades da alma, e a esta,
as que pertencem àquele;
a esta, o eloquent blood, àquele
a possibilidade de pensar, quando
diz: seu corpo pensava,
her body thought

Para Denise Stoklos

Ainda que tenha visto Nureiev em Buenos Aires,
ainda que o tenha revisto na Calle Arenales
e falado com ele, ela é o ser
mais perfeito que já vi no palco,
em vários lugares do mundo,
tudo nela relembra a perfeição
de um deus que também fosse uma deusa:
o corpo fino alongado, o riso,
o rosto, a boca, os dentes,
a palavra, o verbo, a defesa
dos que nunca se podem defender.
Cabelos muito claros, um mover-se
que ninguém é capaz de repetir,
um texto essencial para um teatro essencial,
sempre contra estereótipos,
que tem levado pelo mundo
essa verdade que vai
modificar o mundo.
Não de forma simples,
embora bastante concreta,
porque, já dizia Adorno,
a arte fácil não é séria.
E nem ele poderia saber
como se escreve com o corpo,
como se entra em contato
com tal paixão, tal energia,
com o mundo inteiro,
sendo uma apenas e ao mesmo tempo
o arquétipo do universo
que salvaria, se pudesse,
que há de salvar, se puder.

Minha casa em Brasília, quando a tinha,
já sentia saudades dela,
eu que só assisti à construção
até irmos morar nela,
até começar a cuidar dela,
que nem parecia plantada
em terra estéril, pois respondeu
com horta, jardim e mangas.
Remexendo tanto nela percebi
o quanto estava presa a ela.

As meninas: uma explosão
o crescimento delas,
não explosão como as outras,
mas aquela explosão que vem vindo
e só incendeia o olhar depois
de incendiar a atenção
volta e meia desviada para Blanchot, Cioran,
um certo verso de Dante,
outro de Drummond, outro…

Cresceram tão sem aviso
que antes de ir se foram.
Fiquei no Rio, onde adormeço
sozinha esperando o milagre
de, como disse o poeta,
de forma clara e sentida:
acordar tendo saída.

Marly de Oliveira

É autora de Explicação de Narciso (1960), A suave pantera (1962), O sangue na veia (1967), Contato (1975), A força da paixão (1982), O mar de permeio (1997), entre outros. Os poemas aqui publicados integram seu próximo livro, a ser editado pela Nova Fronteira.

Rascunho