Poemas de Mark Strand

Leia os poemas traduzidos "A história toda", "Meu filho", "Homem e camelo", "A rua no Fim do Mundo", "Poema do poeta espanhol"
O poeta Mark Strand
02/06/2015

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

A morte de Mark Strand, em novembro do ano passado, teve um impacto, no Brasil, desproporcional à pequena popularidade de sua obra entre nós. A notícia saiu com destaque nos principais jornais diários e foi replicada por dezenas de blogs literários. A razão é que ele, que viveu no Brasil por algum tempo, tornou-se um admirador de Carlos Drummond de Andrade, de quem traduziu poemas para o inglês e divulgou incansavelmente por lá. A influência de Drummond sobre Strand pode ser percebida em muitos de seus poemas e é por vezes explícita, como no caso de My Son, aqui incluído, inspirado no poema Ser, de Drummond (vale, aliás, fazer a leitura de ambos, lado a lado). Assim, se nos Estados Unidos Mark Strand é unanimemente visto como um poeta de primeira grandeza, aqui é visto principalmente como “o tradutor de Drummond”. Ele obviamente merece mais.

Mark Strand (Canadá, 1931-Nova York, 2014) foi, sem exagero, um dos mais importantes poetas norte-americanos de sua geração. Com uma carreira que atravessou cinco décadas, foi também professor na universidade Colúmbia e um grande ensaísta. Ganhou, entre outros prêmios, o Pulitzer de 1999. Alguns traços constantes em sua obra são a linguagem precisa, seca e contida; o imaginário ligeiramente surrealista; a recorrência de certo tom autodepreciativo; e, finalmente, fluência tanto em versos curtos quanto nos poemas em prosa.

Os poemas aqui traduzidos cobrem um longo espectro da carreira de Strand. Não me preocupei com a ordem cronológica, mas em pinçar diferentes exemplos das abordagens temáticas e estilísticas feitas por ele ao longo dos anos.

The Whole Story

— I’d rather you didn’t feel it necessary to tell him,
“That’s a fire. And what’s more, we can’t do anything
about it, because we’re on this train, see?”

How it should happen this way
I am not sure, but you
Are sitting next to me,
Minding your own business
When all of a sudden I see
A fire out the window.

I nudge you and say,
“That’s a fire. And what’s more,
We can’t do anything about it,
Because we’re on this train, see?”
You give me an odd look
As though I had said too much.

But for all you know I may
Have a passion for fires,
And travel by train to keep
From having to put them out.
It may be that trains
Can kindle a love of fire.

I might even suspect
That you are a fireman
In disguise. And then again
I might be wrong. Maybe
You are the one
Who loves a good fire. Who knows?

Perhaps you are elsewhere,
Deciding that with no place
To go you should not
Take a train. And I,
Seeing my own face in the window
May have lied about the fire.

A história toda

Eu preferiria que você não sentisse que era necessário contar a ele,
“Aquilo é um incêndio. E além disso, nós não podemos fazer nada
a respeito, porque nós estamos nesse trem, entende?”

Como isso foi ter acontecido desse jeito
Eu não estou certo, mas você
Está sentado perto de mim,
Pensando em suas próprias coisas
Quando de repente eu vejo
Chamas pela janela.

Eu te cutuquei e disse,
“Aquilo é um incêndio. E além disso,
Nós não podemos fazer nada a respeito,
Porque nós estamos nesse trem, entende?
Você me dirigiu um olhar esquisito
Como se eu tivesse falado demais.

Mas é que você não sabe que eu possa
ter uma paixão por incêndios,
E viajo de trem para ficar
Livre de ter que cria-los.
É possível que os trens
Possam acender o amor pelo fogo.

Eu poderia até suspeitar
Que você é um bombeiro
Disfarçado. E, novamente,
Eu poderia estar enganado. Talvez
Você seja aquele
Que ame um bom fogo. Quem sabe?

Talvez você esteja em outro lugar,
Decidindo que sem um lugar
Para ir você não devesse
Pegar um trem. E eu,
Olhando para minha própria face na janela
Talvez tenha mentido a respeito das chamas.

…..

My Son

After Carlos Drummond de Andrade

My son,
my only son,
the one I never had,
would be a man today.

He moves
in the wind,
fleshless, nameless.
Sometimes

he comes
and leans his head,
lighter than air
against my shoulder

and I ask him,
Son,
where do you stay,
where do you hide?

And he answers me
with a cold breath,
You never noticed
though I called

and called
and keep on calling
from a place
beyond,

beyond love,
where nothing,
everything,
wants to be born.

Meu filho

Depois de Carlos Drummond de Andrade

Meu filho,
meu único filho,
aquele que eu nunca tive,
seria hoje um homem.

Ele se move
no vento,
sem carne, sem nome.
Às vezes

ele chega
e deita sua cabeça,
mais leve que o ar
sobre meu ombro

e eu pergunto a ele,
Filho,
onde você fica,
onde você se esconde?

E ele me responde
com uma respiração gelada.
Você nunca reparou
apesar de eu ter chamado

e chamado
e continuado a chamar
de um lugar
além,

além do amor,
onde nada,
tudo,
deseja nascer.

…..

Man and Camel

On the eve of my fortieth birthday
I sat on the porch having a smoke
when out of the blue a man and a camel
happened by. Neither uttered a sound
at first, but as they drifted up the street
and out of town the two of them began to sing.
Yet what they sang is still a mystery to me —
the words were indistinct and the tune
too ornamental to recall. Into the desert
they went and as they went their voices
rose as one above the sifting sound
of windblown sand. The wonder of their singing,
its elusive blend of man and camel, seemed
an ideal image for all uncommon couples.
Was this the night that I had waited for
so long? I wanted to believe it was,
but just as they were vanishing, the man
and camel ceased to sing, and galloped
back to town. They stood before my porch,
staring up at me with beady eyes, and said:
“You ruined it. You ruined it forever.”

Homem e camelo

Na véspera do meu quadragésimo aniversário
eu me sentei na varanda para fumar
quando do nada um homem e um camelo
apareceram. Nenhum deles emitiu de cara
qualquer som, mas conforme vagaram rua acima
e para fora da cidade os dois começaram a cantar.
E o que eles cantavam ainda é para mim um mistério —
as palavras pareciam indistintas e a melodia
por demais rebuscada para recordar. Para dentro
do deserto eles foram, e conforme iam suas vozes
se elevaram acima do som de dispersão
da areia soprada pelo vento. A beleza do que cantavam,
a indescritível fusão de homem e camelo, pareciam
uma imagem ideal para todos os pares incomuns.
Seria aquela a noite pela qual eu tanto
esperei? Eu quis acreditar que sim,
mas conforme eles desapareciam, o homem
e o camelo pararam de cantar, e galoparam
de volta à cidade. Eles pararam em frente da minha varanda,
me encarando com seus olhos brilhantes, e disseram:
“Você estragou tudo. Você estragou para sempre.”

…..

The Street at the End of the World

“Haven’t we been down this street before? I think we have; I think they move it every few years, but it keeps coming back with its ravens and dead branches, its crumbling curbs, its lines of people just stepping from a landscape that goes blank the moment they leave it. And what of the walled city with its circling swallows and the sun setting behind it, haven’t we seen that before? And what of the ship about to set off to the isle of black rainbows, and the midnight flowers, and the bearded tour guides waving us on?” “Yes, my dear, we have seen that too, but now you must hold my arm and close your eyes.”

A rua no Fim do Mundo

“Nós já não caminhamos por esta rua antes? Eu penso que sim; eu penso que eles a mudam de lugar a cada poucos anos, mas ela fica teimando em voltar com seus corvos e galhos mortos, seus meios-fios arruinados, suas filas de pessoas mal saindo de uma paisagem que fica vazia no momento em que elas a deixam. E quanto à cidade murada com suas andorinhas voando em volta e o sol se pondo atrás, nós já não a vimos antes? E quanto ao navio prestes a zarpar rumo à ilha dos arco-íris negros, e as flores da meia-noite, e os guias turísticos barbudos acenando para nós?” “Sim, meu amor, nós já vimos aquilo também, mas agora você deve segurar o meu braço e fechar os olhos.”

…..

Poem of the Spanish Poet

In a hotel room somewhere in Iowa an American poet, tired of his poems, tired of being an American poet, leans back in his chair and imagines he is a Spanish poet, an old Spanish poet, nearing the end of his life, who walks to the Guadalquivir and watches the ships, gray and ghostly in the twilight, slip downstream. The little waves, approaching the grassy bank where he sits, whisper something he can’t quite hear as they curl and fall. Now what does the Spanish poet do? He reaches into his pocket, pulls out a notebook, and writes:

Black fly, black fly
Why have you come

Is it my shirt
My new white shirt

With buttons of bone
Is it my suit

My dark blue suit
Is it because

I lie here alone
Under a willow

Cold as stone
Black fly, black fly

How good you are
To come to me now

How good you are
To visit me here

Black fly, black fly,
To wish me goodbye

Poema do poeta espanhol

Num quarto de hotel em algum lugar em Iowa, um poeta americano, cansado de seus poemas, cansado de ser um poeta americano, se inclina na sua cadeira e imagina que é um poeta espanhol, velho poeta espanhol, perto do fim da vida, que anda para o Guadalquivir e observa os navios, cinzentos e fantasmagóricos no lusco-fusco, deslizar com a corrente. As pequenas ondas, batendo no capim da margem onde ele se senta, sussurram algo que ele não escuta bem enquanto se enrolam e caem. Mas, então, o que um velho poeta espanhol faz? Ele vasculha seu bolso, tira de lá um caderno, e escreve:

Borrachudo, borrachudo
Por que foi que você veio

É minha camisa,
Minha camisa branca nova

Com botões de ossos
É o meu paletó

Meu paletó azul-escuro
É porque

Eu estou aqui sozinho
Sob um salgueiro

Frio como pedra
Borrachudo, borrachudo

Que bom é você
Em vir até mim agora

Que bom é você
Por me visitar agora

Borrachudo, borrachudo,
Para me dizer adeus.

…..

Exhaustion at Sunset

The empty heart comes home from a busy day at the office. And what is the empty heart to do but empty itself of emptiness. Sweeping out the unsweepable takes an effort of mind, the fruitless exertion of faculties already burdened. Poor empty heart, old before its time, how it struggles to do what the mind tells it to do. But the struggle comes to nothing. The empty heart cannot do what the mind commands. It sits in the dark, daydreams, and the emptiness grows.

Exaustão ao pôr-do-sol

O coração vazio volta para casa depois de um dia de muito trabalho no escritório. E o que há de fazer o coração vazio além de se esvaziar de vazio. Varrer para fora o que não dá para varrer requer esforço da mente, o infrutífero esforço de faculdades já sobrecarregadas. Pobre coração vazio, velho antes do tempo, como você luta para fazer o que a mente manda que faça. Mas a luta resulta em nada. O coração vazio não consegue fazer o que a mente ordena. Ele se senta no escuro, sonha acordado, e o vazio cresce.

…..

Moontan

for Donald Justice

The bluish, pale
face of the house
rises above me
like a wall of ice

and the distant,
solitary
baking of an owl
floats toward me.

I half close my eyes.
Over the damp
dark of the garden
flowers swing
back and forth
like small balloons.

The solemn trees,
each buried
in a cloud of leaves,
seem lost in sleep.

It is late.
I lie in the grass,
smoking,
feeling at ease,
pretending the end
will be like this.

Moonlight
falls on my flesh.
A breeze
circles my wrist.

I drift.
I shiver.
I know that soon
the day will come
to wash away the moon’s
white stain,

that I shall walk
in the morning sun
invisible
as anyone.

Palidez lunar

para Donald Justice

A azulada, pálida
face da casa
se ergue sobre mim
como uma parede de gelo

e o distante,
solitário
grasnar de uma coruja
flutua em minha direção.

Eu semicerro meus olhos.
Sobre a úmida
escuridão do jardim
flores balançam
pra frente e pra trás
como pequenos balões.

As árvores solenes,
cada qual enterrada
numa nuvem de folhas,
parecem mergulhadas no sono.

É tarde.
Eu repouso na grama,
fumando,
me sentindo bem,
fingindo que o fim
será assim.

A luz da lua
cai sobre minha carne.
Uma brisa
envolve meus pulsos.

Eu vagueio.
Eu tremo.
Eu sei que logo
chegará o dia
para varrer embora a mancha
branca da lua,

que eu irei caminhar
no sol da manhã
invisível
como todos.

…..

Old Man Leaves Party

It was clear when I left the party
That though I was over eighty I still had
A beautiful body. The moon shone down as it will
On moments of deep introspection. The wind held its breath.
And look, somebody left a mirror leaning against a tree.
Making sure that I was alone, I took off my shirt.
The flowers of bear grass nodded their moon-washed heads.
I took off my pants and the magpies circled the redwoods.
Down in the valley the creaking river was flowing once more.
How strange that I should stand in the wilds alone with my body.
I know what you are thinking. I was like you once. But now
With so much before me, so many emerald trees, and
Weed-whitened fields, mountains and lakes, how could I not
Be only myself, this dream of flesh, from moment to moment?

O velho sai da festa

Estava claro quando eu saí da festa
Que apesar de eu ter mais de oitenta eu ainda tinha
Um belo corpo. A lua brilhou o chão como deveria fazer
Em momentos de profunda introspecção. O vento segurou a respiração.
E veja, alguém deixou um espelho encostado numa árvore.
Me certificando de que estava sozinho, eu tirei minha camisa.
As flores de liláceas recurvaram suas cabeças lavadas de lua.
Eu tirei minhas calças e as pegas rodearam as sequoias.
Lá embaixo no vale o rio barulhento fluía novamente.
Como é estranho que eu deva ficar no mato sozinho com meu corpo.
Eu sei o que você está pensando. Eu já fui como você. Mas agora
Com tanta coisa diante de mim, tantas cobras-papagaio, e
Tantos campos embranquecidos, montanhas e lagos, como eu poderia não
Ser apenas eu mesmo, esse sonho de carne, de instante a instante?

…..

The Remains

for Bill and Sandy Bailey

I empty myself of the names of others. I empty my pockets.
I empty my shoes and leave them beside the road.
At night I turn back the clocks;
I open the family album and look at myself as a boy.

What good does it do? The hours have done their job.
I say my own name. I say goodbye.
The words follow each other downwind.
I love my wife but send her away.

My parents rise out of their thrones
into the milky rooms of clouds. How can I sing?
Time tells me what I am. I change and I am the same.
I empty myself of my life and my life remains.

A permanência

para Bill e Sandy Bailey

Eu me esvazio dos nomes dos outros. Eu esvazio meus bolsos.
Eu esvazio meus sapatos e os deixo ao lado da estrada.
À noite eu volto os relógios;
Eu abro o álbum de família e vejo a mim mesmo quando garoto.

Que bem isso faz? As horas fizeram o seu trabalho.
Eu digo meu próprio nome. Eu digo adeus.
As palavras seguem umas às outras com o vento.
Eu amo minha esposa mas a mandei embora.

Meus pais se levantam de seus tronos
para dentro das lácteas salas de nuvens. Como posso cantar?
O tempo me diz o que sou. Eu mudo e sou o mesmo.
Eu me esvazio de minha vida e minha vida permanece.

…..

A Piece of the Storm

for Sharon Horvath

From the shadow of domes in the city of domes,
A snowflake, a blizzard of one, weightless, entered your room
And made its way to the arm of the chair where you, looking up
From your book, saw it the moment it landed. That’s all
There was to it. No more than a solemn waking
To brevity, to the lifting and falling away of attentions, swiftly,
A time between times, a flowerless funeral. No more than that
Except for the feeling that this piece of the storm,
Which turned into nothing before your eyes, would come back,
That someone years hence, sitting as you are now, might say:
“It’s time. The air is ready. The sky has an opening.”

Um pedaço da tempestade

para Sharon Horvath

Da sombra das cúpulas na cidade das cúpulas,
Um floco de neve, uma nevasca de um só, sem peso, entrou no seu quarto
E encontrou seu caminho até o braço da cadeira na qual você, levantando os olhos
De seu livro, viu o momento em que ele pousou. Isso é tudo
O que houve ali. Nada mais do que um solene despertar
Para a brevidade, para o erguer e despencar dos cuidados, rapidamente,
Um tempo entre tempos, um funeral sem flores. Não mais que aquilo
Exceto pela sensação de que este pedaço da tempestade,
Que se transformou em nada diante dos seus olhos, poderá voltar,
Que alguém daqui a alguns anos, sentando onde você está agora, poderá dizer:
“É tempo. O ar está pronto. O céu se abriu.”

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho