Poemas de Marina Colasanti

Leia os poemas "Só em mim ficou", "O tempo delas", "Gravura na neve" e "Como alguns de nós"
Marina Colasanti, autora de “A moça tecelã”
01/08/2018

Só em mim ficou

Nasci longe de mim
em terra estranha
levada por um hálito de guerra.

Nada era nosso ali
embora nos dissessem diferente.
Meus pais acreditaram na miragem
e na proximidade das estrelas
compraram casa e cão
vestiram albornoz nas noites frias
plantaram vida nova em velho chão.

Minha contribuição foi involuntária
— nascer não é nenhum merecimento —
útil, porém, para marcar começo.
Depois, quando a miragem foi trocada por outra
e as roupas retiradas dos cabides,
só em mim ficou Asmara tatuada
nunca mais vista
e nunca obliterada.

…..

O tempo delas

Havia uma perspectiva nas moradas
uma certa distância entre janela e porta
um entornar de luz além da quina
um desdobrar-se em sombras pelos cantos.
Havia uma expectativa nos espaços
e ao silêncio era dado viver
com os humanos.
Havia, nas casas, possibilidades.
As portas sucediam-se como pontes
e sem que houvesse copas
havia sombras.
Havia, nas casas, um falar de casa,
frases das vigas, sussurrar de pisos,
e suaves conversas entre frestas.
Lenta era a vida das moradas
herdadas como álbuns de família.
E o tempo delas nos calçava
os passos.

…..

Gravura na neve

Não é de papel
meu guarda-chuva
nem sou eu um monge
a caminho do mosteiro no alto do monte
mas os flocos caem nesta rua de Paris
como em uma gravura de Hokusai
e minha alma se verga em devoção
porque tudo se faz branco ao redor
e me devolve
intacta
a lembrança de minha alegria de menina
a caminho da escola
na primeira nevasca.

…..

Como alguns de nós

A rede se desfez
as malhas rotas
já não retêm o passado.

Éramos um pequeno bosque de jovens,
delgados troncos, cabeleira ao vento
que a amizade reunia
e as esperanças.

Depois o sol foi forte e faltou chuva
houve animais e incêndio
houve tratores.
Nem todos prosseguiram. Alguns
secaram na raiz
outros nos galhos.

Somos poucos agora
nos olhamos ao longe, acenamos.
Mas das malhas rompidas
o passado escorreu e
como alguns de nós
incorporou-se ao chão.

Marina Colasanti

nasceu em Asmara (África), então colônia italiana, em 1937, chegando ao Brasil aos 11 anos de idade. Estreou na literatura em 1968 com o livro em prosa Eu sozinha. Em 50 anos de atividade literária, do ensaio à crônica, do conto à poesia, publicou mais de 50 títulos no Brasil e no exterior, sendo uma das autoras mais premiadas da literatura em todos os gêneros.

Rascunho