Só em mim ficou
Nasci longe de mim
em terra estranha
levada por um hálito de guerra.
Nada era nosso ali
embora nos dissessem diferente.
Meus pais acreditaram na miragem
e na proximidade das estrelas
compraram casa e cão
vestiram albornoz nas noites frias
plantaram vida nova em velho chão.
Minha contribuição foi involuntária
— nascer não é nenhum merecimento —
útil, porém, para marcar começo.
Depois, quando a miragem foi trocada por outra
e as roupas retiradas dos cabides,
só em mim ficou Asmara tatuada
nunca mais vista
e nunca obliterada.
…..
O tempo delas
Havia uma perspectiva nas moradas
uma certa distância entre janela e porta
um entornar de luz além da quina
um desdobrar-se em sombras pelos cantos.
Havia uma expectativa nos espaços
e ao silêncio era dado viver
com os humanos.
Havia, nas casas, possibilidades.
As portas sucediam-se como pontes
e sem que houvesse copas
havia sombras.
Havia, nas casas, um falar de casa,
frases das vigas, sussurrar de pisos,
e suaves conversas entre frestas.
Lenta era a vida das moradas
herdadas como álbuns de família.
E o tempo delas nos calçava
os passos.
…..
Gravura na neve
Não é de papel
meu guarda-chuva
nem sou eu um monge
a caminho do mosteiro no alto do monte
mas os flocos caem nesta rua de Paris
como em uma gravura de Hokusai
e minha alma se verga em devoção
porque tudo se faz branco ao redor
e me devolve
intacta
a lembrança de minha alegria de menina
a caminho da escola
na primeira nevasca.
…..
Como alguns de nós
A rede se desfez
as malhas rotas
já não retêm o passado.
Éramos um pequeno bosque de jovens,
delgados troncos, cabeleira ao vento
que a amizade reunia
e as esperanças.
Depois o sol foi forte e faltou chuva
houve animais e incêndio
houve tratores.
Nem todos prosseguiram. Alguns
secaram na raiz
outros nos galhos.
Somos poucos agora
nos olhamos ao longe, acenamos.
Mas das malhas rompidas
o passado escorreu e
como alguns de nós
incorporou-se ao chão.