Poemas de Marília Kosby

Leia os poemas "Descabeladas", "Ancestras", "do mel às cinzas" e "Lugar nenhum"
Marília Kosby, autora de “Os baobás do fim do mundo”
01/06/2022

Descabeladas

Beijarás o coração da pedra escura
No torso de uma noite sem tamanho
O estouro de uma tropa alada sentirás
No vento tonto a fabricar a chuva

A febre da pedra na pele de uma planta
Antiga                                noite, antiga noite
Macerada entre teus dentes
Nossos                                   bichos, nossos

Ensaio de uma serenata pra ninguém
som que a ventania roubou pra si
essa senhora dona do que não tenho
eu canto antes de cantar o primeiro sabiá

e me calo quando piam
as corujas lá no mato

Ancestras

Herdei em vida saber
o nome de muita flor
Quase nada eu sei
em saber o nome
d’açucena
das maria-mole
e das sem vergonha

Me dá a tua mão
aberta eu tenho um ofício
não há mão que minta
Dame la mano, chica
Dame tu mano livro de contar
histórias de debulhar os dias
um a um os cheiros de toda
água toda
erva

Tens qualquer susto
pra chamar de sonho e
choras
a sedução dos abismos

Não há mão que minta
a sorte a sanha da carne
viva

do mel às cinzas

o mel aflora o gosto
às condições do tempo
em que ficou guardado

as pétalas da camélia
pegando o fogo
do sol nunca escondem
as vergonhas de mim

tem gente morrendo
na televisão tem
gente chorando na fila
do supermercado

tem gente procurando
poesia pra não deixar
barato

Lugar nenhum

tenho a cara de lugar nenhum
abrigo um deus em meus espantos
e venho tendo
quando muito
a sorte de adormecer

eu sei do fruto pela flor
e furto do escuro a cor
do verso
maduro
caído da imensidão

se sou moço quando erro
de acertar não envelheço

quanto tempo vive um sonho?

Marília Kosby

Nasceu em Arroio Grande (RS), em 1984. É autora dos livros de poemas mugido [ou diário de uma doula] (2017 — finalista do prêmio Jabuti 2018), Os baobás do fim do mundo (2011; 2015) e Siete colores e Um pote cheio de acasos (2013).

Rascunho