Poemas de Marco Polo Guimarães

Leia os poemas "Duas Paisagens", "Visão de Cda no Rio", "Flash" e "Interrogatório a um amnésico etílico"
Marco Polo Guimarães, autor de “Brilho”
01/04/2006

Duas Paisagens

Esta cidade que se alarga
em leque azul de seda e laca,
em girassóis de ouro e brasa,
em ventanias desatadas;
esta cidade que se alarga
em mangue cinza e praia acesa,
em manga aberta sobre a mesa,
em moça aberta sobre a cama;
esta cidade que se expande
em praça, várzea e avenida,
em superfícies, cromo e vidro,
em rios de sombra em margens nítidas;
esta cidade que se dilata
em cores rubras quaisquer que sejam,
em flexíveis linhas de frutas,
em rijas tramas de sal e fibra;
esta cidade que se amplia
em rol de roupa branca corando,
em vila branca no horizonte,
em asa branca cortando a tarde;
esta cidade que se alaga
de sol, se espicha, se espreguiça,
se vira ativa, brinca e grita,
quando chove muda, fica muda;
esta cidade se limita;
a chuva a prende em barras finas
e intransponíveis, em barras michas
e frias; prisão que a descolore
toda; esta cidade na chuva
torna-se contrátil, ostra viva
fechada; pequena, cubículo,
o homem a habita aos pedaços
e por etapas, tateando cego,
temendo abismos, correndo riscos
na rua riscada de finitos;
esta cidade que empaca, fica
implástica, imóvel, impossível;
submersa, mantém o homem
entre paredes, galochas e capas
contido; se cessa, se cerra,
se cerca, se caça, se embaça
numa dura cerração líquida
que a liquida, ínfima; caracol
sem saída; paralelepípedo
derretido; vento oleoso;
serpenteante serpente de pano
enlameado; em farrapos, a
cidade nem mais é; é só
uma caricatura anônima grafada a
carvão no muro de um terreno
baldio, onde ratazanas escondem
restos de sombras manchadas de giz.

Visão De Cda No Rio

E então passaste pela rua linda
de Ipanema, quase invisível
na pressa que levava também folhas,
poeira e sol, e os gritos do trânsito
ganindo pela tarde que se ia
também.

E tudo fluía na vida
que passa e não volta e deixa na boca
um certo gosto que, tu sabes, fica
e não sai mais.

Eras pequeno
e magro, impossível saber como
tanto rio de tão mínima fonte;
é assim o mistério do humano,
certamente dirias.

E a tarde
bailou, rodopiou nos meus olhos
subitamente cheios de azul.

Moças iam e vinham perguntando
pelo vôlei na praia, homens pesados
entravam nos bares, a conversa
desenrolava espirais perfeitas.

E o riso das crianças e babás
atravessava a lembrança do mundo.

E lá ias disperso pela tarde
como um caniço pensante que o vento
verga e leva e some e traz
quando menos se espera.

A carne não se espanta mais,
é tarde.

Mas há sempre surpresas
espreitando nas janelas dos ônibus
que desfilam letargos e coloridos
levando corpos para os subúrbios.

Meu amigo me aponta: Lá vai ele,
magro, frágil, com pressa e a pasta
na mão guarda o quê? papéis? revólver?
ou o brilho de um riso fugidio?
ou a perna que some na esquina?
ou a vida que passa e torce a gente?

O Rio de Janeiro escorria
pelas vidraças seu corpo elástico
e a minha alma toda rangia
na procura de um verso inesquecível
mas tão simples quanto um chope.

E então passaste, poeta, pela calçada,
ao alcance da mão e tão longe
quanto Ulisses voltando para casa.

Flash

Um retrato em néon
para mim, é o que preciso
para estar mais viril
quando a noite for longe demais.

E um calçadão alagado
pelo bronzeado das moças
para passear mais alegre
quando o céu ficar baixo demais.

E uma mulher sem mistério
(o corpo coberto de balas
de menta) e uma gargalhada
quando o vento passar violento.

E uma calma de cimento
armado, quando for perto demais
a lua obscena latindo
no fundo do quintal sem fim.

E, principalmente, um retrato
de mim em néon voando
veloz escarlate deixando
um rastro firme no cenário.

Interrogatório a um amnésico etílico

Andar para a frente nesta incerteza
que mais te resta fazer?
Descer do bonde na hora da curva
e seguir por outra rua
será isso a independência?
Em que estrela brilhará
a faca do teu destino?
E poderás alcançá-la
e, mesmo de mãos nuas,
mesmo segurando-a pela própria lâmina
cortando os dedos e tal, mesmo assim
cortar as cordas que te atam os pés?
E estarás assim como um feto
quando chegar a pergunta?
Nenhuma mulher de saia azul e blusa roxa
ou um amigo de cara lavada
ou um cavalo reluzente
virão pela estrada ao teu encontro.
A quem poderás falar
dos teus esquecimentos
e da culpa que não sentes?

Marco Polo Guimarães

Jornalista, poeta e compositor. Nasceu em Recife (PE), em 1948. Foi hippie, artesão, tradutor de livros de bang-bang, cantor de banda de rock, gerente de supermercado e diretor de museu. Publicou os livros Voo subterrâneoNarrativasMemorialBrilhoPalavra claraA superfície do silêncio e Caligrafias.

Rascunho