quando minha mãe estava grávida
meu pai deu a ela
uma xícara de chá de malmequer
dizendo ser tiro e queda
para dor de estômago
em pouco tempo
minha mãe começou a sangrar
“agora é uma gravidez de altíssimo risco”
os médicos disseram
ela passou os meses seguintes
deitada na cama
lendo revistas sobre maternidade e
tomando banho dia sim, dia não
em um fim de janeiro de 1991 eu nasci
e nasci viva, para o pesadelo de alguns
apesar de saber que foi
no útero de minha mãe que
eu comecei a romper com
a ordem dos homens
não posso deixar de reparar que
desde pequena
sou sempre a primeira
a ficar cansada
…
todas as noites
eu mato um homem
e oculto seu cadáver
se você soubesse como nossa pele
parece uma carapaça de couro e
como é difícil perfurá-la
mesmo sentindo muito ódio
se você soubesse o quanto pesa
um amontoado de matéria morta
e o quanto de sangue
cabe em nervuras tão finas
é o suficiente para inundar uma casa
manchar roupas, tapetes e sofás
tem um cheiro tão forte que poderia
impregnar nossa memória por anos
e nos arrebatar numa noite de sábado
daquelas em que inesperadamente
o vento abre a porta da sala
e nos mostra do outro lado
somente um tirânico vazio
todas as noites eu
esfaqueio um homem
até a morte
os lugares mudam a cada noite
e o homem
o homem nunca tem rosto
perceber que ele já não respira sempre
me causa um fino estremecimento
e penso algo como
“dessa vez, quem venceu fui eu”
a sensação de vê-lo inerte no chão
e não ter quem me ajude a esconder o corpo é
tão concreta quanto a debilidade
que sinto ao assistir a determinadas notícias
na televisão
mas nelas, nessas notícias
a morta sou sempre eu