Fêmea
Que hábitos são esses
— voos repetidos, razões de prazer e dor?
Até hoje não lhes conheço a origem
Sou esfinge-mãe à janela
(ao modo bisbilhoteiro)
seguidamente bebendo
a linguagem das nuvens
a lonjura do horizonte
O excesso de alimento
amadurece-me os ovos
Algumas vezes, percorro milhas e milhas
para desovar no lombo das montanhas.
…
Luvas
Tenho estas luvas pardas
corrugadas, sem brilho
(pele de minhas mãos)
E estes gestos lentos
dos meus dedos fracos, confusos
derrubando tudo
Tenho estas luvas pardas
frouxamente ajustadas
aos músculos e ossos
E um silêncio de morte
reinando entre as falanges.
…
Matéria matinal
Nada quebra a receita cósmica neste novo dia
A manhã plenamente aberta
O doce gosto da luz
A flor pontual que a determina
(O sol caramelizado é um clássico na celebração da vida,
dá-se a lamber por nossas línguas mornas entre sonhos)
As vidas seguindo o curso habitual
No coração da casa todo um cardápio de rotina
a flutuar entre os dedos
O que vem à mesa. A nota forte do café. A maciez do pão.
E aqueles que provam o nada, até a última fatia.
…
Camponesa
Essa constância à janela
(costume de tantos anos)
amealhando céus e terras
flores e folhas das estações
Ninguém viu ainda
mais do que a metade do meu corpo
dentro de uma blusa anacrônica
abotoada até o pescoço
No entanto, o coração ao ar livre
está oferecido e pronto para
antigos assobios de amor
como daqueles moços camponeses
(com seus arados)
para aquelas moças debulhando trigo.
…
Golpe mortal
Nenhum indício de vida
Sendo hoje domingo
com esse modo de tingir em sangue
o calendário
faz acreditar
que esteja morto à facada
(na jugular)