Tédio celestial
“Quem mediu a água do mar
Com as conchas da mãos
Ou mediu o céu com os dedos”
(Isaías 40:12)
Lá, onde o mar se confunde com o céu
Dizem que mora um deus
Que brinca de soprar barquinhos
Como, se eterno infante,
Fizesse da eternidade
Um constante brinquedo.
Esse deus-menino
Sofre dos males da solidão
E, triste, todo dia
Inventa brinquedos novos
Brisas, mausventos, tempestades.
E os raios, coriscos, trovões
São apenas efeitos
De um tédio abissal.
…
Avesso
“Os nossos corações
estão doentes, e as lágrimas
escurecem a nossa visão” (Lamentações 4:17)
Perdi a noção do riso
Foi num desses ontens que se esquecem
Numa tarde de tempestade
Ou nalgum intervalo
Entre um nanopentelhosegundo e outro.
Rir?
Essa faculdade foi nos dada
Num momento de escárnio divino
Afinal, se nos olhamos do começo ao fim
Não se vê razão
Para a escancarada gargalhada.
No segundo seguinte, talvez, mortos
E rir em tal condição
É chorar às avessas.
…
Por aí, paisagens
“Até os jovens se cansam,
e os moços tropeçam e caem” (Isaías 40:30)
Caminho
A queimar paisagens.
Árvores, campos, e até o mar
Fumam.
Ardência nos meus olhos
A fumaça estampa-se no céu,
Tatua
A brevidade em coisa eterna
Meus braços soltos
Ardentes
Despedem-me do meu tempo.
Caminho
A queimar-me na paisagem.