Poemas de Jorge Luiz Nascimento

Leia os poemas "Eu, Buda", "Punhais e navios", "Praga de bailarina", "Um deus daqui", "Necrológico" e "Noturno"
01/01/2002

Quando conheci o Jorge, tínhamos vinte anos. Já era então um poeta impressionante. Desses que declamam irrepreensivelmente seus versos a qualquer momento. Não precisam guiar-se pela leitura. Usam os olhos para nos mirar na cara. Há muito gostaria de vê-lo publicado para ser lido por outros viventes, mas ele sempre se evadia. Enfim, com a colaboração da editora 7letras, seu primeiro livro, Punhais e Navios, estará disponível a partir de fevereiro próximo. Atualmente, Jorge Luiz Nascimento mora no subúrbio carioca do Méier. Mestre em Ciências Sociais, quando não há greve, leciona sociologia no colégio Pedro II. Gosta de uma cerveja e escreve à mão. Seus poemas deveriam ser lidos ao som de sua voz possante e barroca (bar-rouca), mas, em silêncio, são igualmente explosivos. Mauro Pinheiro

Eu, Buda

Passarão os domingos devastando a casa
Hei de ser hábil para atuar no mundo da produção
Perderei os dentes, os amigos e o medo
Aprenderei a poupar palavras, a controlar os nervos
A preguiça há de multiplicar o conhecimento de rostos e cidades
Morrerei de velho e por pura convicção.
Peço que não sejam violentos com as moscas que virão me rondar
Para o morto tanto faz moscas ou pombas.

Punhais e navios

O que aconteceu contigo?
Tua mão quase não tem peso
Tua boca não sustenta um beijo
E como endureceu teu rosto…

Vem, fica tranqüilo
Esta noite não te definirei nada
Falarei de punhais e navios
Pontuarei as frases te chamando de filho
E me entregarei a ti
Como só me entrego aos espelhos.

Praga de bailarina

Era uma tarde incomum de maio
Das mangueiras fervilhavam pardais
Eis que à minha porta assombra
Uma bailarina embriagada.

Meu vício de então era
Enfileirar cálices de tomar laxante
E num átimo aliviá-los
Do conteúdo intragável.

Essa bailarina disse-me então
O que jamais esquecerei:
— Jorge, ainda hás de te tornar o cavalo do que és.

Um deus daqui

“Tu num é Deus”, mamãe me diz
Que sabe mamãe de deuses?
Que sabe mamãe de mim?
No rádio deu que eu morri
Nunca tive rádio e estou bem vivo
Minha outra face não se parece mais comigo
Aprendi que a dor do perdão
Pode ser maior que a do castigo.

Necrológico

Jureminha,
Um dia vou morrer
Como morreu Penha
E morreu Rosa, minha avó mitológica
E morreu teu pai, Sebastião
E morreu Januário que conheceu o cativeiro
E morreram tantos italianos na lendária Rua João Torquato.
E morreu Maria, Djalma logo depois
E morreu tio Jesus
E morreu Clara
E morreu Filhinha
E alguém a quem até já enterraram
E só hás de saber quando já vai a meio a missa do sétimo dia.

Jureminha,
Tão certo quanto me deste à luz
Um dia vou morrer
Para acrescentar mais um registro
Às sucessões da Cristandade
Sepultadas no cemitério de Irajá.
Morte trágica ou morte plácida
(e como todos os mortais, bens vês que já morro tarde)
Essa morte será só minha
Minha morte.
Minha e de ninguém mais.

Noturno

Noite da estrelinha vaga
Ternura mofada de domingo
Últimos festins de álcool
Alguém vem à sacada para ver o que há
Prolongado por mais um beijo o horário das namoradas.

Uma mulher muito branca e com as partes raspadas
Há de atear fogo ao corpo
Tornar-se-ão mais veementes
Os diálogos dos cachorros.

Jorge Luiz Nascimento
Rascunho