Poemas de John Montague

Leia os poemas traduzidos "Bênção", "Matando o porco", "Tem dias", "Cessar" e "Uma língua enxertada"
John Montague, poeta irlandês
01/07/2023

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Blessing

A feel of warmth in this place.
In winter air, a scent of harvest.
No form of prayer is needed,
When by sudden grace attended.
Naturally, we fall from grace.
Mere humans, we forget what light
Led us, lonely, to this place.

Bênção

Uma sensação de calidez neste lugar.
No ar de inverno, um aroma de colheita.
Nenhuma oração é necessária,
Quando somos por súbita graça atendidos.
Naturalmente, da graça caímos.
Meros humanos, esquecemos qual luz
Nos conduziu, solitários, a este lugar.

Killing the pig

The noise.

He was pulled out, squealing,
an iron cleek sunk in the roof
of his mouth.

(Don’t say they are not intelligent:
they know the hour has come
and they want none of it;
they dig in their little trotters,
will not go dumb or singing
to the slaughter.)

That high pitched final effort,
no single sound could match it—

a big plane roaring off,
a diva soaring towards her last note,
the brain-chilling persistence of an electric saw,
scrap being crushed.

Piercing & absolute,
only high heaven ignores it.

Then a full stop.
Mickey Boyle plants
a solid thump of the mallet
flat between the ears.

Swiftly the knife seeks the throat;
swiftly the other cleavers work
till the carcass is hung up
shining and eviscerated as
a surgeon’s coat.

A child is given
the bladder to play with.
But the walls of the farmyard
still hold that scream,
are built around it.

Matando o porco

O barulho.

Ele foi arrastado para fora, berrando,
um gancho de ferro enterrado no
céu da boca.

(Não diga que não são inteligentes:
eles sabem que a hora chegou
e não querem nada com isso;
cavam com suas pequenas patas,
e não vão mudos ou cantando
para o abate.)

Aquele último e agudo esforço
som algum pode igualar —

um grande avião rugindo,
uma diva subindo o tom rumo à nota final,
a arrepiante persistência de uma serra,
sucata sendo esmagada.

Penetrante & absoluto,
somente os elevados céus o ignoram,

E então tudo para.
Mickey Boyle dá
um sólido golpe de martelo
na cabeça entre as orelhas.

Logo a faca busca a garganta;
logo os outros cutelos trabalham
até que a carcaça esteja pendurada
brilhando e eviscerada como
o avental de um cirurgião.

Uma criança recebe
para brincar, a bexiga.
Mas as paredes do curral
ainda guardam aquele berro,
e em volta dele estão erguidas.

There are days

There are days when
one should be able
to pluck off one’s head
like a dented or worn
helmet, straight from
the nape and collarbone
(those crackling branches!)
and place it firmly down
in the bed of a flowing stream.
Clear, clean, chill currents
coursing and spuming through
the sour and stale compartments
of the brain, dimmed eardrums,
bleared eyesockets, filmed tongue.
And then set it back again
on the base of the shoulders:
well tamped down, of course,
the laved skin and mouth,
the marble of the eyes
rinsed and ready
for love; for prophecy?

Tem dias

Tem dias em que
deveria ser possível
arrancar a cabeça
como um capacete velho
ou amassado, direto da
nuca e da clavícula
(aqueles crepitantes ramos!)
e plantá-la com força
no leito de um riacho.
Correntes claras, limpas e geladas
correndo e borbulhando através
dos compartimentos ácidos e inúteis
do cérebro, tímpanos escurecidos,
órbitas turvas, língua esmaecida.
E depois colocá-la de volta
em sua base sobre os ombros:
bem compactada, é claro,
a pele e a boca lavadas,
o mármore dos olhos
enxaguados e prontos
para o amor; para a profecia?

To cease

for Samuel Beckett

To cease
to be human.

To be
a rock down
which rain pours,
a granite jaw
slowly discoloured.

Or a statue
sporting a giant’s beard
of verdigris or rust
in some forgotten
village square.

A tree worn
by the prevailing winds
to a diagram of
tangled branches:
gnarled, sapless, alone.

To cease
to be human
and let birds soil
your skull, animals rest
in the crook of your arm.

To become
an object, honoured
or not, as the occasion demands;
while time bends you slowly
back to the ground.

Cessar

para Samuel Beckett

Cessar
de ser humano.

Ser
uma pedra caída
na qual jorra a chuva,
mandíbula de granito
lentamente desbotada.

Ou uma estátua
com a barba de um gigante
de azinhavre ou ferrugem
na praça de uma aldeia
esquecida.

Uma árvore deformada
por ventos dominantes
um diagrama
de galhos emaranhados:
Retorcida, seca, solitária.

Cessar
de ser humano
e deixar os pássaros sujarem
seu crânio, e os animais pousarem
na dobra do seu braço.

Tornar-se
um objeto, honrado
ou não, conforme a ocasião;
enquanto o tempo lentamente te encurva
de volta para o chão.

A grafted tongue

(Dumb,
bloodied, the severed
head now chokes to
speak another tongue—

As in
a long suppressed dream,
some stuttering garb-
led ordeal of my own)

An Irish
child weeps at school
repeating its English.
After each mistake

The master
gouges another mark
on the tally stick
hung about his neck

Like a bell
on a cow, a hobble
on a straying goat.
To slur and stumble

In shame
the altered syllables
of your own name;
to stray sadly home

An find
the turf-cured width
of your parent’s hearth
growing slowly alien:

In cabin
and field, they still
speak the old tongue.
You may greet no one.

To grow
a second tongue, as
harsh a humiliation
as twice to be born.

Decades later
that child’s grandchild’s
speech stumbles over lost
syllables of an older order.

Uma língua enxertada

(Estúpida,
ensanguentada, a cabeça
decepada engasga para
falar uma outra língua —

Como num
longo sonho reprimido,
alguma balbuciante e trun-
cada provação)

Uma criança
irlandesa chora na escola
repetindo seu inglês.
Após cada erro

O mestre
faz uma nova marca
no bastão de registros
pendurado em seu pescoço

Como um sino
numa vaca, a corda
numa cabra desgarrada.
Falar errado e gaguejante

Envergonhado,
as sílabas modificadas
do próprio nome;
arrastar-se de volta para casa

E descobrir
que a velha lareira
da casa de seus pais
agora parece estranha:

Nas casas
e nos campos, ainda
falam a velha língua.
Você a ninguém saúda.

Dominar
uma segunda língua, uma
humilhação tão grande
quanto ter que renascer.

Décadas depois
o neto daquele menino
tropeçará nas sílabas
perdidas de uma velha ordem.

John Montague
Foi um dos principais nomes da poesia irlandesa no século 20. Nascido em Nova York, em 1929, de pais irlandeses, voltou ainda na infância para a Irlanda e depois, ao longo da vida, viveu ora cá, ora lá, discípulo e amigo de William Carlos Williams de um lado, e de Samuel Beckett de outro, foi talvez o “mais americano” dos poetas irlandeses. Faleceu em 2016.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho