Faxina
Algumas vezes morremos
mais do que o devido,
a parte que morreu
sabe que morreu
e dói inacessível.
Mas não acumule
as partes perdidas,
quarto da bagunça
atulhado de perdas,
sombras inimigas.
Ponha a dor em caixas,
varra os seus resquícios,
a cicatriz que ficar
vai para o inventário
da dolorosa faxina.
O peso de perder
nos ressuscita.
…
Mesopotâmias num minuto
Um minuto, maestro, um só minuto,
pra bebermos à luz de estarmos vivos;
a batuta suspensa traça um susto
no centro deste instante já antigo.
Mesopotâmias vibram, eu escuto,
no ar, bem ao redor, quase em sigilo,
e sopram cuneiformes que tabulam
os nossos perdimentos desavindos.
Mas estarmos aqui, tão inconclusos,
respirando não sermos tão finitos,
talvez, maestro, talvez, seja um abuso
não bebermos à luz de estarmos vivos.
…
Aquele sítio
Um pouco de silêncio, meus amigos,
um pouco de silêncio nesta noite,
como se em solidão já não ouvíssemos
o mundo em precipício a quem o ouve.
Não precisamos nos calar tranquilos
e nem fazer da vida ouvidos moucos,
mas achar no barulho aquele sítio
onde somos nós mesmos sem retorno.
Dói sermos esse ponto indivisível,
a noite sem plateia e com ferrolho,
doer é uma forma de estar vivo —
um pouco de silêncio nesta noite.
…
Percurso
Sentados ou em pé, a viagem não é fácil,
o preço da passagem custa o sonho,
o tempo na bagagem pesa em dobro,
mas no ponto esperamos esperança.
Cada um, no coração, leva uma cidade,
o seu trajeto — ida e volta — sem suborno,
e mesmo que não saiba o ponto certo,
descerá quando for o seu momento.
No entanto, todos sabem sem palavras
que a vida vale mais em movimento.
…
34 —
Para Flávia Aninger
as fragilidades sustentam o mundo
o menos que frêmito
entre o ser
e o seu fracasso
o sol é um ponto de luz
no olho do canário
a amêndoa ao cair
equilibra o espaço