Poemas de Inês Campos

Leia os poemas "Chove no imperativo" e "Sobre uma palavra fundamental"
Inês Campos, autora de “Roca”
01/04/2022

Chove no imperativo

chove nos domingos da sua tristeza, nas palavras fundamentais
chove na cama desarrumada, nas migalhas debaixo das cadeiras
nas plantas que sobreviveram ao esquecimento da varanda
nenhum choro de criança, nenhum latido
de novo as bolhas na parede, o mofo atrás dos armários
de novo desistir ou quase
porque também chove nos anseios
em todas as leis
chove para alimentar os grãos
chove demais inundando os grãos
e, enquanto a casa só transborda,
chove nos homens e mulheres invisíveis
debaixo das marquises
debaixo dos viadutos
debaixo só da chuva

chove nas promessas, nos projetos
nas fundações mal construídas
chove na ancestralidade, na palavra ancestral e no seu peso
chove no desenho de mulheres e na toda história das mulheres
nas palafitas, nas canoas, no riso das árvores
chove nas páginas, nas palavras, nos versos torrenciais
chove em todo o ano vivido e na ideia de futuro
chove no álbum de fotografia, na arca e
em todos os cadernos nela guardados
nas gavetas entreabertas, no seu cheiro que já não há
chove no meu corpo procurando a chuva
na camisola, nos pés descalços, em todas as perguntas

chove nos contornos da lembrança
nos poros do cimento, na grama que devia existir
chove em toda aula, toda regra, toda conclusão filosófica
chove nas hipotenusas e raízes quadradas
chove até mesmo nas raízes aéreas
transforma as folhas caídas em húmus, acorda os subterrâneos
chove nas listas, nos símbolos, nos prêmios
pergunto se não seria hoje o fim do amor
preciso que seja hoje
peço para a chuva levar, peço o fundo da queda
que os rios retornem, que o mar se revolte
que os pedidos segredados não sejam de todo atendidos
que a água abra um novo caminho, que os pés caminhem
que a chuva demais preencha o árido
acorde a mulher no descampado, acorde a mão
que escreve a mulher, acorde a mulher com a mão a escrever

hoje seria o dia do seu aniversário se você estivesse aqui
é preciso chover todo o amor e o medo de amar
chove no imperativo, o amor na marquise
você disse que voltaria com as chuvas, mas não

Sobre uma palavra fundamental

seguro em cada mão uma palavra fundamental
enquanto os passos em volta
e repito alto porque o som traz a forma
esquecimento e amendoeira
parece-me assim, antes mesmo de escolher,
que amendoeira é uma palavra redonda, doce
fácil de tão redonda e de tão doce
com letras e fulcros que se podem tocar
mastigar em lascas com frutos óbvios e tão
presa ao solo com suas raízes expostas
virando cama — esconderijo

marquei nela o que posso esquecer
mesmo que me esqueça dos símbolos
porque nela há o canto, os balanços e as quedas
no ponto em que sua guia se divide fizemos nossa casa

os adultos não dizem
as crianças também não, ameaçadas com castigos
mas eu sei, de alguma forma sei, que a mãe que não
atravessou o abismo entre a cama e a chave
não é a mãe
a mãe é a árvore e seu cheiro ninando
as tardes com a menina nos braços
balançando as folhas para seus segredos
aconselhando na casca

então, talvez, amendoeira não seja uma palavra que se esvazie
porque não é o que significa

Inês Campos

Nasceu em Belo Horizonte (MG), onde vive ainda hoje. É poeta e advogada. Em 2017, estreou na poesia com o livro Geografia particular, pela Cas’a edições. Seu segundo livro, Roca, foi lançado em 2019 pela mesma editora. Alguns de seus poemas foram publicados também em revistas e coletâneas nacionais e estrangeiras.

Rascunho