Poemas de Henrique Wagner

Leia os poemas "O elefante e o cágado", "Abutre", "Tango", "Depois daquele verão", "Vallejo" e "Os galos"
Henrique Wagner, autor de “As horas do mundo”
01/08/2003

O elefante e o cágado

Tarde demais. Demasiada.
O dia inteiro de um mundo
numa tarde em que o asfalto e o céu
definem a noite e a manhã,
permutam-se para se chegar ao meio,
o espaço estacionado e denso,
o rabo matando mosquitos
e o casco emperrando a porta.

Abutre

Cantando ao som de um alaúde,
a velha forma de uma lira,
sinto que fecham o ataúde
sobre essa antiga e forte pira.

Tudo o que nos era desfrute
amarga a arte em sua gíria,
e a ave da vez é o abutre
no ombro de uma outra Valquíria.

Carnívoro, me entrego à dor
da humanidade que tem fome
daquilo tudo que não sou,
que a minha carne me consome!

Tango

Escuros, meus cabelos estão
sempre a crescer a cada corte,
e não cessam de crescer,
assim, como se a morte
me quisesse dizer
que de mim não se esquecera
e que estará lá me esperando,
inteira, incólume e deslumbrante,
sobre o meu crânio.

Depois daquele verão

A velhice muda de face
a cada estação
de trem.

A cada estação
um disfarce,
assim como quem

muda de estação.

A velhice muda em compasso;
nada se ouve a cada passo
senão os restolhos das folhas,
de um renovado outono,
depois daquele verão.

Vallejo

Assim como a biografia do seu rosto
me revela as fotos do seu sorriso de bosque,
os pinheiros sobre seus ombros,
os bigodes de gato, os olhos brancos e as faces
rubras, a língua canhota dormindo nas nuvens,
os lábios amarelos falando cabelos de vento e linho,

assim como

o sapoti afiado, rangendo os lábios com um olho escuro
fixado em minha boca, meu baixo-ventre,
a semente, o sêmen e a unha do pé,
tudo num crucifixo prateado cuja cabeça
desprotegida aceita os espinhos com volúpia,

assim como

a história de sua casa de rugas
e teias de vaga-lumes, redes de pescar cochilas,
tudo tão protegido quanto uma casa
de brinquedo dentro da caixa, papel celofane,
laço cor de rosa ou fita azul de cetim.

Assim como a biografia de um minuto
em que sua vida é um livro de arte rupestre,
e seu rosto um tronco cujo ponto central
fora decorado por um entalhador magnífico,
e poeta nas horas vagas de lume.

Os galos

A Astúrias, Hélio Pólvora e Aleilton Fonseca

Acordo com grãos de milho no chão do quarto.
Lá fora, nesse imenso campo onde me resguardo,
ouço os galos ciscando raios de sol.
Cristas de sangue derramam-se sobre uma manhã tranqüila
em que estamos todos bem, estáveis,
presos, cantando a canção do mesmo tempo

esse que dorme e acorda e ressona
por entre os bicos carniceiros dos galos.

Vários os horizontes, várias as fazendas
e tudo vário quanto as crias e mudas
do campo.

É cedo para se dizer velho. Quantos séculos
dura uma lápide
sob sol e chuva, bosta de vaca e limo?

Bosta de vaca.

Os rifles ressoam mesmo guardados. Não
há guerra silenciosa; há auroras
que se chocam, travesseiros que agonizam,
gansos assassinados pelo sono dos soldados,
sabugos debulhados pela insônia
da primeira sessão de cinema do dia.

A vida corre pelos olhos mais que pelos pés.

E ao vê-la assim fugir, os galos,
desesperados, inventam os dias.

Henrique Wagner

É autor de As horas do mundo.

Rascunho