Poemas de Helena Arruda

Leia os poemas "Ave-mulher", "Cidade submersa" e "Borrões do tempo"
Helena Arruda, autora de “Há uma flor no abismo”
02/08/2022

Ave-mulher

uma mulher com a faca afiada olha o animal morto
sobre a pia da cozinha.
ali, num ritual pagão, ela destrincha o animal.
retira, uma a uma, suas penas, põe todas numa bacia de alumínio
e atiça fogo. labaredas sobem e parecem desenhar formas
no ar. um código. toda mulher lê sinais.

depois ela amola a faca e, cirurgicamente, recorta a ave morta
estirada, de olhos semicerrados. tira-lhe o fígado.
o coração, ainda quente, dá a última pulsão de esperança.

ela pensa no quanto da ave há nela
: olhos cerrados para o que não quer ver.
a mulher, perplexa, reflete-se na ave que está ali, exposta.

decide então ela mesma abrir-se ao meio para ver o que há lá
nas suas entranhas. para ver se o seu coração ainda bate quente,
se ainda bate.

a mulher e a ave se igualam em delicadeza. uma não sobrevive
sem a outra. elas se olham e se enlaçam. e, dançando nuas, voam
para outras bandas, onde já não há dor

nem nuvens de algodão.

Cidade submersa

sou agora outra cidade
: palpável
: afogada em finas camadas de papel
de onde traço mapas subterrâneos à procura
de saídas.
um rio corta a paisagem que lateja sob meus pés
cansados de pisar as asperezas do mundo.
sigo meu itinerário
e
atravesso paredes invisíveis
: cortinas d’água despencam sobre meus ombros
nus de alegrias.
o peso do mar sobe as montanhas, inunda a menina
dos meus olhos fundos
e desaba em minhas entranhas, rasgando-as
até a madrugada. ouço gritos brotando de dentro da terra
: voçorocas com goelas vermelhas abertas
sugando tudo
: pontes janelas portas saídas
vidas.
já é outro dia.
o céu explode sobre a cidade devastada. não há constelações.
o brilho das estrelas é um país ausente
que berra dentro de mim.
sou agora outra cidade
: submersa silenciosa apagada
mas espero a carta do sol
que virá com o vento
soprando tudo
: recomeços.

Borrões do tempo

as asas da mariposa desmancham-se sobre meus pés
feridos
: cinzas dos mortos nos crematórios de Deus

o mundo é desfazimento e dor
: volatilização, vapor

tudo some com o vento, tudo retorna às origens
ao centro da terra, coração do mundo, às entranhas

depois ouço o silêncio
e o sal a inundar meus olhos negros
da escuridão

registro minhas memórias num caderno azul-mediterrâneo
: borrões do tempo

sou memória; também sou esquecimento.

Helena Arruda

Nasceu em Petrópolis (RJ). É autora dos livros de poesia Interditos (2014), Corpos-sentidos (2020) e Há uma flor no abismo (2021). Finalista do Prêmio Off-Flip de Literatura (2021) em poesia, escreve quinzenalmente para a coluna Flauta Vertebrada, do Jornal eletrônico O Partisano, integra o corpo editorial da Revista Topus – espaço, literatura e outras artes, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, e o coletivo Teias, da região sul fluminense.

Rascunho