O prodígio das tintas
Sopra-nos o vento a música de seu fulgor:
um elo de ecos, um verso de Gonzalo Rojas,
a espinha do universo no piano
de Thelonius Monk em Memories of you.
Lugar metafísico onde tudo combina
com seu diverso e outro latejo,
em um desses momentos por onde cruzamos
as gélidas ruas de Kafka.
A alma esplende em metamorfoses.
Por ali nos indagamos do equívoco do enigma:
— por que tudo é sempre o mistério do vir a ser,
a almofada do maravilhoso, seu estalo de trevas.
Sons de palavras: letras que surgem
do obscuro ritmo entrelaçado de nossos nomes
— do entreato da sagrada miséria às minúcias de nossa queda,
a um só tempo dialética e mundana.
Livros de sons: a voz deixada no oco da tradição,
notas do prodígio que é seguir vivendo
lendo o misterioso nas páginas de Bataille Blake Benn.
Por ali nos indagamos e a tinta não cessa não cessa.
…
Tratados da sombra
O poeta é exigido por uma angústia vital:
aquela do desenlace em si de uma nova
transparência a partir de toda a opacidade
de sua vida. Tudo nele busca o desespero
iluminado das formas, sua convulsão
precipitada sobre a beleza das imagens
aterradoras. Refere-se o poeta sempre
ao outro que ainda não conseguiram tocar
suas débeis figuras. Indigente do instante
e do conhecimento do mistério, concebe
para si a tarefa de escrever um livro
impossível: o da personificação da morte.
Dissolve-se na matéria de suas metáforas,
misturado à visão do livro findo inacabado.
Com quem se parece o pobre poeta senão
com Deus? Indaguei o nome do guardião
de seu museu de imagens. “Cuido de sombras
que deliram do desejo de ser a medida
de todos os homens”. Que nome dar a ele?
(Gorostiza Holan Bopp Schwob Pessoa Breton)
Vislumbramos as possibilidades de amor
e amizade entre os homens, por mais estranhas
que sejam as atividades humanas. Parece-nos
a diversidade uma fotografia do vazio.
Apodrecida no excesso de signos a linguagem
não é mais a glória do indivíduo. Não mais
que Deus, em sua máscara de sombras, o velho
diabo feito de livros, ignorado em seu mundo.
O que discute sempre o poema é a idéia
da personalidade. Somos gloriosos na paródia
de nossos próprios atos. Será este o progresso
da consciência? Há uma grave teia de anomalias
que se fia na expressão dos dias. Whitman
dilacerado por sua humanidade, Bataille deslocado
por seu riso solto. Quais os antecedentes
conjurados da dor, as sombras pronunciadas
por suas visões? À luz particular de cada
cena as idéias são sempre distintas. O poema
não repercute senão o material de sua memória.
Desconfia do homem quando se recusa a criar.
Ressurgem as formas da dor de sua metafísica:
“muda-me a cada toque o tolo que sou em ti”.
O poeta cai de suas metáforas. Ensaiamos
o enigma comum de situação e lugar, porém
não suportamos o peso das coisas que em nós
se preparam. Jamais ignoramos o espetáculo
de nossas ruínas, distinto cenário onde
o homem atua como o verme da própria espécie.
Ainda que renove-se o poeta com suas perdas,
resta um raminho ausente, uma corda, uma visão
da beleza, uma ilusão do ser, algo que torna
incessante a queda e o poema um código de falhas.
Na cena que se repete, o mesmo súbito relâmpago:
“O que fiz de ti?” — Livro decomposto
em repetições. Hamlet encharcado de ilusões.
Haverá sempre algo ali, impossível de se seguir.
…
Alarde de espelhos
Ergo o olhar sobre a árvore visível,
escolha difícil em vista da quietude
de suas folhas: alarde de espelhos
em uma manhã sem ventos. Síncope
risível de abraços entre ser e tempo.
Um ritmo binário consome o homem,
escravo do alvo e da tensão do arco.
Réplica de uma dor lapidada à beira
da imagem ideal de todos os arcos:
guarda consigo o relâmpago e a guia.
…
O banho das modelos
Nudez roubada da noite mais escura.
A que espaço pertencemos?
Negras cabeleiras tomadas pelo banho.
Jazem as juras de amor como uma queda de si mesmas.
“Cuido da inocência de meu amo” — orgulhava-se
a pobre Lais a uma amiga entre bálsamos.
“Desce sobre mim seu corpo como o sonho de um deus”,
dizia Timandra, enferma de sua paixão.
“Não vejo outro verso que não seja seu ardor”, chegou
a escrever Calisto, cujo corpo jamais foi localizado.
A bela Eufrosina bebia tanto quanto Dylan Thomas.
“Onde estamos, minha alma, se não acendo
a gramática da volúpia?” Sabe-se que chorava muito
no banho com suas criadas.
Sínope em silêncio sofria
suas dores secretas como um pressentimento.
Morta no desespero do fogo, seu corpo desfigurado
gelava a noite. Lívia foi descrita
como uma mulher de inteligência invejável,
não bastasse a perfeição de seu colo que despertara o interesse de inúmeros pintores.
Quais os sacrifícios da beleza? O crime assemelha-se a uma grande visão.
Passamos pelo banho das jovens cortesãs, afeitas a uma geometria do amor. Com suas cores essas mulheres contemplavam mais que uma fábula ou uma parábola. Dilatavam toda simetria reinante no corpo de seus amantes. Foram o bulício de trevas mesmo em almas afeitas à quietude. Cobertas de crimes, jamais deram sepultura a seus profundos ventres que abrigaram os equívocos da aventura humana.
…
As tintas negras do jardim
I’ll shoot the moon
right out of the sky
for you baby
Tom Waits
(“The Black Rider”, 1993)
A Vera Cruz de Oliveira
O que vejo é teu olho dançando no jardim:
descreve a si mesmo com tamanha paixão
o olho pintor de seus quadros em movimento
— confessa-se uma máscara de Lucebert,
três vezes estivera com seu espírito maligno,
quase um pária, quase um duende, o olho.
Sua áspera voz correspondia às imagens
com que seguia redimensionando o jardim.
Fotos de combate, estatuetas corroídas,
papéis amassados, bosta de rato, explosão
de desordem por todos os ângulos, no atelier,
ainda legível um recorte amassado ao chão:
“um poeta que pinte não pode dar grande coisa”.
Segue o universo caindo de si, quase um olho,
tomado de imagens como janelas a descascar.
O que vejo no jardim são detalhes do horror
que ainda comove pequenas histórias ilustradas
— o poeta alimentando o caos, os santos óleos,
pequenas salas de costura onde o mundo se refaz,
olhar inquieto em seu infortúnio: resplendor
dos signos decaídos, guaches de abismos em chamas,
dançávamos e ele não parava de cantar, o olho:
I’ll shoot the moon right out of the sky for you baby
— mostra-me, criatura, as evidências de tua máscara,
não somente o irrefutável, mas sua lástima de si.
O olho excelso no caminho ilumina meu espanto.
Seu bailado acentua-se por toda a pele do jardim:
afeito a dissonâncias, rende-se à dor a criatura.
Uivam figuras patéticas à distância, dança mítica,
legado de antigos filósofos que viam deuses em toda parte.
O olho no jardim é um grande oceano que sangra,
pouco entende do tempo que ocupa com suas serpentes e letras que segue traçando em tintas negras e árvores-pincéis as imagens que nada têm em comum com a eternidade a simples representação do momento em que as coisas são menos e menos o despojo de sua própria agonia quando o desejo confunde-se com o impossível e instaura-se a multa por transgressão e
não somente Hölderlin mas todos os poetas
viveram algum momento como se fossem deuses.
O olho é a proteção do ardor mais secreto da beleza,
embora o jardim contaminado por imagens,
luz que já não se derrama sobre Goethe,
a última rosa do verão, o filme que se esvai
com a noite que atravessa de um encanto a outro.
A semente que cai (novamente a voz de Lucebert),
cai sobre o olho que assimila aquilo que vê.
Pintura e poesia. Mais do que o bailado dos signos
no atônito jardim tomado por seus dramas,
o compasso de nosso corpo negro
firmado no horizonte, sinuosa orquestra de timbres,
os traços caindo inspirados em arabescos
e flautas, bambus refletidos contra o sol,
amuletos-linces, rajas de opala do rio da linguagem,
o olho do amante engana, com seu lápis-trenó,
não existe apenas para a salvação dos cegos.
É grave como a página escrita e o bailado de Mondrian.
O olho é o jardim, mesmo que tomado de paixão.
Projeta-se sobre a idéia (sua) da imagem, um signo branco.
E segue a dançar, vôo de luas em um céu de pincéis.
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Mar de mares
Dentro da memória se guarda o amor
silencioso das cinzas. Um mar secreto
que nos invade em insistentes dobras
do tempo. Provo de tua imortalidade,
um cinema tecido entregue a orações:
dá-me teu amor, oh dá-me teu amor.
Lembra-me o poeta que a dor não
passa de um minuto. Nada se iguala
ao vento de tua voz, festa de sombras.
Outro corpo que se esboça em plena dor.
Capela severa do mar dentro da qual
escrevemos e os versos nunca retornam.
Secreto vínculo com o destino — oh dá-me —
que não se encontra nunca em casa.
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Luz e sombra
Aquele que ama as letras desvela o argumento das trevas com serenidade. Assevera uma sentença árabe que o homem se dissimula atrás de sua língua. Moisés não encontrara senão em Aarão as palavras com que transmitir a seu povo as aspirações de uma união total com Deus. Schöemberg morrera sem concluir Moses und Aron. Que luz tão severa suprime a paisagem à nossa volta? Que dibuk penetra em nossa afligida alma e com um escândalo a arrebata? O definitivo rio que flui nos tecidos da linguagem conduz o homem a um abismo sem fim. Aquele que ama as letras supera a obsessão de revelá-las.
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Estatuetas
A Rolando Toro
Ser tua imagem sem causar-te aflição,
figurando em teu ser como o fogo.
Passas por mim e não me fraudas a dor,
em paz com o deus de tua morada.
Tu me deste o espírito e me deste o olho,
o côvado profundo em que me ponho
para que lutes com toda a força do nome.
Teu duplo refaz o que tive e vi e fui,
sombras cujos atributos conspiram ainda.
Uma delas mora na esquiva escuridão.
Outra se arrasta por rostos que recuam.
Haverá uma que me vê trazendo a noite.
São como palavras herdadas pelo fogo.
Por toda a terra vagam e nada cresce ali.
O nome é apenas parte de seu legado,
um dos símbolos da morte que entalham
em formas várias e suplicantes versos
que dizem o mesmo dá-me um caminho.
Figuras de pedra e madeira e porcelana,
as mesmas que temos sempre em casa
e que não deixam de bater o coração.
Tu és um pássaro e um sol e o túmulo
de um deus que imita o curso de teus dias.
Tua bela forma golpeia qualquer escriba
em tradução de trevas ou terra santa.
Passagem e selo abissal de toda crença.
O que buscas e o que o livro oculta
em linhas invisíveis a quem supõe sabê-las.
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Página marcada
Teu nome é ausência, vertigem da memória,
flecha de ouro cujo percurso descerra
uma furtiva utopia. Ascensão ao inferno,
contigo nas emanações do vazio. Vapores
do caos sopram que tua morte é meu asilo
primordial. Um a um os fantasmas virão
depor: recolho as cinzas de teu refúgio
em meu corpo. Estranho mar de sentidos:
tua imagem paciente, oh Incriado, teia
que nos torna uma tribo de vícios. Tremor
de visões daquela que guarda a chave
em seu leito. Materiais de risco. Fogueira
de sonhos. Metáfora isolada na torre
dos delírios. Mãe infundada. Este é o corpo.
…
A imagem desfeita
A mesma voz sempre indaga se tudo está escrito. Um ruído estendido à tua porta. Outro foco de fagulhas insiste em saber quantas são as colunas circulares. Rumores surgem da terra, erguem abismos por toda a noite. Uma furiosa atração por estrondos nos atormenta. Oh velho murmúrio, velha lei de escombros! Que me dirá o pai desconhecido anunciando a taça de seus enigmas? As raízes se perdem em portas carcomidas por ressurreições. A alma se multiplica em vermes que celebram seu degredo. Por vezes o homem se sente feliz em não ser nada. Ignoro lugar e instante em que me encontro contigo, o que se segue ao som de nosso impossível diálogo. Ouçamos o que diz a morte. Abre o talismã de teus lamentos. Mostra em teu peito onde está escrito que tudo se repetirá. Ouço a pancada seca do tempo em nossas vértebras. A última palavra nos fará a todos mendigos.
…
Legado de cinzas (Ester)
Em que condições se deve julgar um homem?
Remirá pelos ermos de seu banimento, e ali
eliminará de sua memória os atos que o levaram
ao catre? De que valerá o julgamento? A pena
santifica ou martiriza? O martírio sagra ou apenas
suplicia? Imensos os cabelos e a voz profunda,
como jamais se ouvira. Uma pausa medida
e logo seguia: Quantas dádivas nos negamos
enquanto condenamos alguém por crimes
dos quais todos somos cúmplices? Sacrifícios
de que ordem resgatam o convívio perdido?
O que esperar de homens que se sentem justos
ao julgarem alheio o que lhes cala tão íntimo?
Quantos a terão ouvido, em sua única visita?
…
Natureza morta
Cadáveres em lágrimas,
nada mais é inverossímil em tua existência?
Três lances de escada antes da queda
rabiscavas de memória umas palavras finais.
Com quem falavas em teu caminho para o abismo?
Quais vozes feridas e estrangeiras
em teu drama rugiam, quase bêbadas, quase vozes?
Será tão imensa assim a eternidade que acaso não possamos nos encontrar em uma tarde de sábado?
Silêncio rochoso, enfurecido em seu casco carcomido,
que estranho vício a tudo converte em angústia?
Cadáveres prontos para uma ceia de dores,
soluçante cosmogonia debruçada no vazio, rios de insetos piolhos badejos mortos pulgas lesmas lentilhas podres latas de óleo — naufrágio queimante — ferrugem de faróis tumbas flutuantes — estupor diante do sangue das noites?
Há uma distância clássica entre o que pensas e o que és, trevas de atitude, batismo de cruzes, sofismas gastos, coro de anjos, sempre um mesmo porto de aventureiros,
lugar pouco provável para nosso encontro.
Ainda mais que não te revelas, entre cadáveres remando contra a morte,
restos de comida fratura de muletas górdio de fezes — de onde cai o tempo? — o verso se quebra a todo momento.
Onde estás? Onde moras?
Indago onde poderias ter nascido.
Habitualmente cercado de cadáveres,
tua noite será a grande indústria dos desvalidos?
Metáfora decaída, cantina de preços exorbitantes, estamos sempre a dois passos de algo, perdas acumuladas, rotina de miséria solúvel e pastel de ansiedades — será este teu mundo descomunal, tua bíblia que a tudo abrange mas que nada percebe em seu íntimo, o pandeiro da jovem esmeralda, mulheres tatuadas a estilete, garotos decepados por não portarem armas, um ovo de tartaruga por onde escapa um jacaré, a suprema glória da superficialidade, morte entre a pele e o abismo de sentidos, bandejas de bagos e uvas servidas em congressos de paz, artistas a vácuo, suplentes de alquimistas acidentados em trabalho, imbecis especulativos, baratas familiares, pêssego pitomba açaí tudo de ouro, morte eterna, será?
Em que oceano descomunal te escondes, poeta?
Disfarces: um amargor telúrico uma máscara dionisíaca um barroquismo ululante — ah formidável maneira de não estar no mundo.
Um demônio triste escreve um roteiro banal de arrependimentos.
Teus cadáveres já não te suportam.
…
De volta ao abismo
Compra-a para teu gozo, disse-me o pai, desejoso de livrar-se de uma viúva, ainda que sua filha fosse. E o fiz, sem hesitar. Aqui me tens a teus pés, senhor, disse-me a filha, disposta a servir à ceifa de aflições que me velavam o corpo. A doce mulher parecia apegada a seu destino. Mantinha os olhos vivazes sempre arregalados em busca de algo. Ao banhar-se, no antepasto, entre óleos e vinhos, mesma doçura. E foi se servindo de tudo à sua volta, ela própria a serva incomparável da aquilatada condição. Os olhos saltitantes, por vezes longínquos, cadentes. Aos poucos compreendi: não era apenas queda ou sedutora suavidade. Buscavam uma brecha onde voltasse a ser a infatigável dama do abismo.
…
Epílogo
Lábios de seda
Um plantio dentro da pele
Se me amordaçasses ainda ouvirias o salmo de minhas ânsias
Pequenos lábios do mundo
Algazarra insepulta de falas que são lâminas que falos e abismos
Uma linguagem de coxas
Trapézio mobiliado pelo desejo
Lábios perversos que não se negam jamais
Lençol que aturde os movimentos do sigilo que acoberta
Lanterna de lábios lavrando a cena a ser escriturada
Por vezes o inferno não sabe onde cair
Será deserto como no princípio ou evocado por débeis ratazanas viciadas na vida eterna de um laboratório?
Mandinga entranhada em cada sílaba
O que dizem a mesma reza prelúdio gasto sobretudo do acaso guarda-sóis devassados por falta de uso
Tocas em mim
Lábios na pélvis no visgo que buscas
O que haverá de mais visionário que o temor?
Sussurro em teus lábios maiores que punição alguma me levará ao arrependimento de tocá-los
Lutuosa harmonia de quantos beijos?
Açoites que planejam mechas em devaneios de formas que se misturam entre si
O impossível lábio único intransitivo que ninguém o culpe por haver agido sozinho