Poemas de Flávio Luis Ferrarini

Leia os poemas "incontido", "primeira infância" e "sapatos velhos"
01/04/2004

incontido

a borra contém a morte do vinho
a cárie contém a morte do dente
o lábio contém a morte do beijo
o machado contém a morte da árvore
o galho contém a morte do vôo
a bunda contém a morte da injeção
o anzol contém a morte do peixe
o mar contém a morte do rio
a morte contém a vida depois da morte

primeira infância

nasci no mundo chamado travessão paredes
minha primeira bola veio aos cinco
meu primeiro caderno veio aos seis
minha primeira enxada veio aos sete
minha primeira bebedeira veio aos oito
minha primeira calça comprida veio aos nove
meu primeiro cigarro veio aos dez
minha primeira namorada veio aos onze
minha primeira infância não veio nunca

sapatos velhos

meus sapatos estão velhos
velhos rotos maltratados
crescendo a barba de algas
dois velhos navios atracados
atrás da porta em esquecimento

meus velhos sapatos estão soltos
já não são mais prisioneiros
dos meus pés, andam sozinhos
atrás da porta percorrendo
sonhos de mares de caça ao vento

meus sapatos velhos estão roucos
de tanto silenciar atrás da porta
com a chave na mão e não há porta
derrubada no chão a esperança
é um mar morto no corpo do tempo

meus sapatos velhos estão enterrados
no mar distante atrás da porta
chorando nos passos que caminham
mágoas que não passam nunca
assoalho da casa, deserto de águas

Flávio Luis Ferrarini

É autor de Volta e meia um poema na veia, Olho vermelho no centro do espelho, Minuto diminuto, Outubro sobre arco, entre outros.

Rascunho