Maçã sobre a mesa
A Clarice Lispector
Um golpe de vento amarrotou a toalha de linho,
debaixo da maçã, sobre a mesa.
Duas horas de atraso, a ausência
de vapores. Os odores dos temperos suspensos.
Adiavam a vinda, sem se dar conta
de que as luzes alteram a mesa —
sem sombra,
a maçã no escuro.
Apple on table
For Clarice Lispector
Sudden wind crinkled the linen cloth
under the apple, on the table.
Two hours late. No vapors
rising. The odors of spices suspended.
They had delayed their coming, not taking
into consideration that light alters the table –
shadowless,
the apple in the dark.
…
Luminosidade: uma história de família
Um risco na parede de madeira,
atravessando o vão entre duas tábuas
e depois se espiralando —
cabeleira vermelha,
mancha: emaranhada em si mesma,
e depois bifurcada —
hastes quebradas,
pendendo como fios de água.
A casa minutos antes da demolição:
ao final do corredor,
coberta por uma fina camada de líquen,
um retângulo como porta,
e o roseiral, e a claridade.
Luminosity: a family history
A scratch on the wall
across a crack between two planks,
then enveloping itself: stain —
red voluminous hair
tangled, then split —
broken stems
bending like threads of water.
The house just before the demolition:
At the end of the corridor,
covered by a thin layer of lichen,
a rectangle for a door,
and the rose bed, and the brightness.
…
Nota
Eu nunca disse. É como
se eu entendesse, subitamente,
o sentido das perspectivas.
Vôo de um pássaro azul desta árvore
para a mesma árvore mais atrás.
Nossas cabeças, uma figura
minimalista: duas linhas retas e um sol
no ponto de fuga. Janela aberta
para o poente fixo, a iluminar,
com raios difusos, esta nota inacabada.
Galho quebrado trazido do fundo
no bico de um pássaro reluzente.
Note
I never told you. It’s as if
I had suddenly understood
the meaning of perspectives.
Flight of a bluebird from this tree
to the same tree, just over.
Our heads, a minimalist
picture: two straight lines and a sun
at the intersection. Window
open to a fixed twilight, lightning,
with diffused rays, this uncompleted note.
The broken twig brought from beyond
in the beak of a shining bird
.…
Natureza morta (lírios)
Alguém deve ter movido alguma coisa, deixado cair um prato, e depois
foi varrendo tudo escada abaixo —
os cacos, com uma vassoura de palha.
Curvas, andares, territórios em constante
suspensão — janelas no ciclo monástico, nada para ver lá fora
numa hora como esta,
ou escutar: um nada sonoro sobre a madeira,
entre as rendas da toalha. Cesta de frutas. Jarro de água.
A província que inventamos todos os dias: tradição quebrada acidentalmente –
ergue-se um monumento num canto qualquer,
o corpo exposto, quase consumido: perfeito
e irreparável. Digo-lhe entre —
Há mais lírios nos vasos, há menos gente do que antes. Tudo continua
visível e intocado.
Still life (lilies)
Someone must have moved something, dropped a plate, then
swept the pieces down the stairs —
every shard, with a straw broom.
Curves, floors, territories in continuous
suspension — windows in their monastic cycle, and nothing to be seen
outside, at this time,
or heard: lack of sound on wood,
through the tablecloth. Basket of fruit. Jar of water.
The province we invent every day: tradition accidentally broken —
a monument built somewhere else,
its body nearly consumed: perfect
and irreparable. I say come in —
There are more lilies in the vase, fewer people than before. Everything
remains visible and touched.
…
Natureza morta (pêras)
Chuva na quina do telhado —
verde-água, pendendo como folhas: paródias de um carnaval de vento,
em parte imaginado. Uma cesta de pêras esquecida na chuva, as pêras encharcadas
sobre a mesa com tampo de latão.
Chuva sobre latão: monotonia interrompida pela natureza imperfeita dos sons.
No pomar, os frutos pesam nos galhos, que se aproximam do solo.
Nossa conversa é fértil…
De novo esquecerei de tudo que se disse, do lago cor de petróleo,
das pêras sobre a mesa, do tilintar incessante e corrosivo da chuva sobre o latão.
Still life (pears)
Rain over the roof’s edge —
water-green, jittery as leaves: parodies of the wind’s carnival,
partially imagined. A basket of pears left out in the rain, soaked
on the brass tabletop.
Rain on brass: monotony interrupted by the real and imperfect nature of sound.
In the orchard, fruit weights the branches down, closer to the ground.
Talking will prove fertile…
Over and over again I will forget everything that was said, the deep lake the color
of petroleum, the pears on the table, the humble carnival of rain on brass.
…
Natureza morta (sertão)
Estrada rasgada de um ponto indefinido a outro no mapa
–– oeste sempre,
tarântulas, milhares de manchas escuras movendo-se em ritmo lento
e constante.
Você quer lembrar o nome do homem ao volante, o nome do menino
que vende santinhos à porta da igreja, e o daquele que caminha ao lado de um bode.
Nome comum numa terra seca,
repetido a cada chegada, porque se chega
repetidas vezes. Em toda parte, sol sobre a planície, e um córrego no pensamento:
mesa em casa de barro, uma garrafa de aguardente, uma lasca de pão.
Still life (semi-desert)
A road open from one indefinite place to another on the map
–– always west,
tarantulas, thousands of dark spots moving in a slow and even
rhythm.
You want to remember the name of the man who is driving, the name of the boy
who sells saints at the church door, the one who walks beside a goat.
A common name in a dry land
repeated at each arrival, so that you are constantly
arriving. Everywhere, sunlight on the plains, and a stream in someone’s mind:
a table in a thatch, a bottle of gin, a loaf of bread.
…
Casa dos avós
Um tronco de árvore atravessado no quintal —
os homens, exaustos
em mangas-de-camisa,
gesticulam apontando para o tronco.
Na casa em silêncio,
miniaturas espalhadas pelo chão, deixadas ali
por oito crianças vestidas de preto.
Um dos meninos (meu pai)
passa correndo, agarra um soldado de brinquedo,
e o faz voar janela afora
para dentro da floresta tropical.
Nunca tinha visto homens tão fortes.
Eles falavam em construir um caixão.
Grandparents’ house
A giant tree-trunk across the yard —
the men, exhausted
in their working shirts, talk,
gesturing towards the trunk.
In the quiet house,
miniatures left on the floor
by eight children dressed in black.
One of the boys (my father)
runs into the house, grabs a toy soldier,
makes him fly from a window
into the tropical forest.
…
Aquelas bailarinas
No canto direito, no teto do meu quarto,
de vez em quando, vejo um móbile:
sete bailarinas e uns guarda-chuvas.
Fica girando por dias, depois desaparece.
*
Dou-lhes nomes, quando posso.
Uma bailarina (eu a chamo Larissa)
tem o péssimo hábito de bocejar
quando estou lendo. É a menos
atraente entre elas, com uma perna
mais fina que a outra e a maquiagem
excessiva: um risco sobre a boca,
os olhos desproporcionais.
Toda hora ela estremece
de um jeito esquisito, como se
quisesse despendurar-se do teto.
Um dia ainda despenca, toda quebrada,
numa página da autobiografia de Nabokov.
*
Samantha toca bandolim,
mas nem sempre consigo escutá-la.
Preciso estar semiconsciente, surda
às conversas alheias, à multidão
que se ergue fora dos livros dentro
da vida atemporal do meu quarto.
Samantha sabe quando estou fingindo.
Ela vigia minha respiração, meu pensamento.
Quando adormeço, toca
bandolim, inspirando sonhos.
*
Judith está fora do peso.
Enquanto as outras dançam, ela gira
primeiro para um lado,
depois para o outro.
Carrega um guarda-chuva de borracha
branco com bolas vermelhas. Apesar
do porte e da falta de talento, Judith
tem o respeito das demais. Ela leu
a Divina Comédia, fala esperanto,
pode recitar dez mil versos de cor;
quando as outras desaparecem
ela hiberna dentro de um livro.
*
Letícia e Suzana são gêmeas
univitelinas. Há algo vulgar no modo
como elas cruzam as pernas,
o ar disperso, insolente. Não lêem,
e provavelmente não hibernam.
Comem qualquer coisa: mosquitos,
spray de cabelo, poeira, ondas de rádio.
Riem tão alto, que chega a ser
embaraçoso trazer pessoas em casa.
Fazem de tudo para chamar a atenção:
atiram-se contra as paredes, performam piruetas
escandalosas. E quando alguém
finalmente as toca, ficam irritadas.
*
Karen é a única que faz sombra
quando a luz está acesa. Ela acha
que pode nos confundir: se a luminária
da minha escrivaninha está acesa, ela se projeta
sobre um pôster A Dança, de Matisse;
se a lâmpada do teto está acesa, deita-se,
fazendo formas, sobre a autobiografia de Nabokov.
Há um truque, que eu não sei explicar:
de vez em quando, ela aparece ao pé
da cama, imóvel, sem que haja qualquer
fonte de luz vindo de cima. A mágica
dura uns dois minutos. A sombra vai sumindo
até que desaparece, seguida por um apito.
*
Uma bailarina é visível só por uns segundos
quando abro a porta. Tem um guarda-chuva
cor-de-limão. Vejo-a tão pouco, que não me
acostumo a chamá-la de Isadora ou Lisa ou Nádia.
…
These dancers
Sometimes, in the north corner
of my bedroom ceiling, I see a mobile:
seven ballet-dancers and a few umbrellas.
It spins there for days, then disappears.
*
I like to give them names if I can.
One dancer (I call her Larissa)
has a bad habit of yawning
while I read. She is the least
attractive among them, with one leg
thinner then the other and too much
make-up: a scratch on the lips
and disproportionate eyes.
She often trembles awkwardly as if
to unhook herself from the ceiling.
Some day she will fall, broken to pieces
on a page from Nabokov’s autobiography.
*
Samantha plays the mandolin, but
I am not always able to listen.
I have to be half-conscious, deaf
to conversation, to the crowd
standing outside the books
in the timeless life of my bedroom.
Samantha knows when I am lying.
She watches my breathing, my thoughts.
When I sleep, she plays
the mandolin, inspiring dreams.
*
Judith is overweight.
While the others dance, she turns
first to one side,
then to the other.
She carries a rubbery umbrella, white
with red circles. Despite
her pounds and lack of talent, Judith
has the others’ respect. She reads
the Divine Comedy, speaks Esperanto,
can recite ten thousand lines by heart;
when the others disappear,
she hibernates inside a book.
*
Letitia and Susanna are identical twins.
There is something vulgar in the way
they cross their legs, in their insolent glances.
They don’t read, and probably don’t
hibernate. They eat anything: mosquitoes,
hair-spray, dust, radio waves.
They laugh so indiscreetly it becomes
embarrassing to have visitors. Do
anything to attract attention: throw
themselves against the wall, perform scandalous
pirouettes. Yet when touched
they show their irritation.
*
Karen is the only one who casts shadows.
She thinks she can confuse us:
if my desk lamp is on, she projects
herself on a poster of Matisse’s Dance;
if the ceiling lamp is on, she lies,
making shapes of her own
on Nabokov’s autobiography.
She has one trick I cannot explain:
sometimes she appears at the foot of my bed
perfectly still, without any light
coming from above. This magic lasts
about two minutes. Then the shadow fades
and she vanishes, with a whistling sound.
*
One dancer is visible only for a few seconds
when I open the door. She has a lime-green
umbrella. I see her so rarely I can’t get used to
calling her Isadora or Lisa or Nadia.
…
Tangente
1.
O som do rio
abafa o zunido de uma abelha
entre flores pequenas na outra margem.
No bananal, sombra ao meio-dia,
bananas ainda verdes.
Uma criança vai à frente, descalça,
distraída, colhendo pequenas flores brancas,
que crescem em mato cortante.
Bananas maduras nos mercados
e flores pequenas para um buquê.
2.
O anel brilha na mão
segurando o buquê. Carrega-o
sem esforço. Uma folha cai.
A mesa está posta: mel, leite, cereal
e bananas. Flores brancas num vaso.
Pela janela,
vê-se o apartamento oposto ao nosso,
uma criança dorme.
É meio-dia, o sol alto.
Nosso prédio na sombra de outro.
3.
Um pêndulo acima da velha cadeira.
Apagamos as luzes, fechamos a porta.
Uma janela esquecida aberta.
Luz da tarde embranquece as flores.
Na rua, andamos mais devagar.
As fachadas vão perdendo
contraste. Uma curva à esquerda:
Nunca fizemos este caminho.
À noite, as ruas se parecem.
O rio corta o bananal.
4.
À porta do prédio, um estranho
detrás de um vitral olha para o pulso.
Não nos vê entrar.
A mesa desfeita: cereal, cascas
de bananas e farelos de pão.
As flores começarão logo
a murchar. Do prédio oposto,
uma criança nos observa.
Nuvens sobre o bananal.
Chuva cai na cidade.
Tangent
1.
The sound of the river
muffles the buzzing of a bee
in the little flowers on the other bank.
Shade at noon in the banana plantation,
bananas still green.
A child walks ahead of us, barefoot,
distracted, picking little white flowers
that grow in the sharp grass.
Ripe bananas in the market
and white flowers for a bouquet.
2.
A ring glistens on the hand
holding the flowers. It holds them
at ease. A leaf falls.
The table is set: honey, milk, cereal
and bananas. White flowers in water.
Through the window
we see the room opposite ours,
a child asleep.
It’s noon, the sky is clear.
Our building in the shade of another.
3.
A pendulum above an old chair.
We turn the lights off, lock the door.
A window left opened.
Twilight whitens the flowers.
We walk faster on the streets.
The facades of the buildings begin
to loose contrast. A curve to the left:
we’ve taken this way before.
At night, the streets are alike.
The river runs into sharp grass.
4.
At the entrance, a stranger
behind glass is looking at his wrist.
He doesn’t see us walk by.
The table to be cleaned: cereal,
banana peels and bread crumbs.
The flowers will soon begin to wilt.
From the room opposite ours,
a child watches us.
Clouds over the banana plantation.
Rain over the city.