Poemas de Fernando Fortes

Leia os poemas "Argumento para morte", "O peso dos anos", "Mecânica celeste" e "Maratona"
01/02/2006

Argumento para morte

Eras assim como quando não serás:
do primeiro ao último minuto
ousavas lamentar o que não foste
na visão inacabada de um sonho
que a vigília interrompeu —
assim, entre o bocejo e a insônia
a memória e o esquecimento.
E a cada noite que deitavas na cama
para morrer ou fazer amor
te prevenias com orações a Deus.
Surpreendido pela vida
acordavas para recomeçar o dia
em torno das mesmas coisas.
Até hoje as mentiras se repetem
com raras invenções.
És a um tempo o velho
e a criança enrugada
mas já não rezas
implorando a salvação.
Teu próprio fim
tem a dignidade do princípio.

O peso dos anos

No dia de teu aniversário
comemoras a morte de mais um ano,
um ano queimado nas velas
que te aproximarão do calor da família,
celebrando, em vão, mais um recorde de permanência
enquanto a morte te come pelas beiradas.
Que é o sono, senão uma sucessão de dias esquecidos
de te manterem plenamente vivo, enquanto passam?
e que dizer das horas consumidas
em memória da primeira infância?
Se mais vivo hoje pareces,
nesta festa em tua homenagem,
é que esqueceste de agradecer
o não comparecimento da morte
antecipada aos teus dias sem futuro.

Mecânica celeste

O suicida traz ao chão os astros,
puxa do céu os cordéis da vida.

Maratona

De manhã cedo, domingo,
o corre-corre dos velhinhos
arrastando-se escrupulosamente
pelo passeio público,
esticando vida na névoa branca.
Que espectros são esses?
E o guarda, que interrompe o trânsito, responde:
É a última corrida em direção ao cemitério.

Fernando Fortes

Poeta e prosador, é autor de Tempos e coisas (1958), Arma branca (1979) e O estranho mais próximo (1988), entre outros. Os poemas aqui publicados pertencem ao livro inédito De olho na morte.

Rascunho