Poemas de Fernando Fábio Fiorese Furtado

Leia os poemas "Cadeira", "Galo", "Hospital" e "Sombra"
Fernando Fábio Fiorese Furtado
01/10/2003

Cadeira
Fonética da cadeira — Quando não seja muda, trata-se de uma consoante ora oclusiva, ora fricativa.
Morfologia da cadeira — Os autores divergem quanto a classificá-la como artigo ou numeral (nas lojas e show-rooms), adjetivo ou pronome (nas empresas e repartições públicas), preposição ou interjeição (nos apartamentos de subúrbio). Sem embargo, predominam os que a consideram apenas conjunção.
Sintaxe da cadeira — Em geral sem sujeito, oculta o homem-nádegas. Pode-se atribuir-lhe incontáveis predicados, embora permaneça assento, braços e espaldar.
Estilística da cadeira — Se há estilo, declina para o não ser cadeira.
As leituras da cadeira — Manuais de instruções, bulas de antipiréticos, anais de congressos de lingüística, relatórios de guarda-chaves, resenhas do último livro do último filósofo francês.

Cadeira é oração para excomungar cama, porta e caminho.

Galo
Do galo não me agrada nem o bico nem as esporas. Ainda menos a crista. Rubra, rija, eriçada. Quase fálica. Espada ou glande manchada de sangue?

Dos galos, apenas o carijó. Parcimonioso nas cores. Discreto — o que é raro num galo. Quando parado, uma tela tachista à procura do zero da expressão. Em movimento, múltiplos dados lançados ao acaso, cintilações num lago turvo, camuflagem precisa para um mundo preto-e-branco.

No meu reduzido repertório de galos, o carijó tem no garnisé o seu antípoda. Reencenam no quintal o que Nietzsche, “dentro de suas sete solidões”, denominou a moral do senhor e a moral do escravo.

Hospital
Há modos de estar doente de horizonte. Os mesmos de aprender a página pelas margens, de operar o abismo como se fora ponte, de apurar o trapézio para a primeira dor.

Qual se eleva a voz num número de malabares, há o touro e o diestro, o branco e o quase. Nada que possa adiar a mão com que traças um outro.

Sombra
Está ali desde sempre. Quando convida é para soletrar fantasmas.

Sem ela não existia árvore, pássaro, casa, nuvem, verão. Sem ela, a musa mirrava.

Aprecia o espelho, o palrar dos signos, os hóspedes sem pressa; confabula com a febre, com a fuga e o açúcar; acompanha os gestos daquela moça depois de nua.

Pode-se tornar portátil e atravessar a tarde nas mãos de uma dama antiga.

De todas, prefira a física.

Espelho
De acordo com Clarice Lispector, “não existe a palavra espelho — só espelhos”. Seriam todos idênticos, não fora o gerânio que medra em alguns.

Quando na sala, são gentis, protocolares. Distantes até, embora atentos. Procuram indícios entre os móveis.
No quarto, mudam em assassinos suaves. Surpreendem as vítimas disfarçados de amantes ou livros de cabeceira.
Os mais perigosos, no entanto, não se deixam ver.

Criados em cativeiro, podem ser domesticados. Então se comportam como qualquer criança, à exceção de um dom natural para atravessar paredes e prever a morte de pessoas da casa.

Fernando Fábio Fiorese Furtado

É autor de Corpo portátil, entre outros

Rascunho