Poemas de Fabrício Marques

Leia os poemas "Lagoa", "Azuis de Ticiano" e "Canção para a cidade que sonha"
Fabrício Marques, autor de “A máquina de existir” Foto: Marcio Lacerda
01/10/2021

Lagoa

Pampulha. Pampulha. Pampulha.
Voa à deriva a ave sim vermelha
à esquerda de quem tanto olha
pois tanta maravilha é quase falha
Longe, ao que parece, a lua brilha
Na superfície da lagoa mexem-se folhas,
e agora é que no lado oposto mergulha
a ave, distraindo quem não percebe
o discreto gesto de adeus dos solitários
que se atiram em suas velhas águas.

Azuis de Ticiano

Com a certeza de que
nada é mais humano que o azul
(há controvérsias)
a antropóloga estudou
os azuis de Ticiano
durante 30 anos em Veneza.
Especializou-se em azuis.
Ao primeiro olhar, reconhecia
o azul do céu de Madri
E as nuances que o diferenciam
do céu de maio de Belo Horizonte.
Entre os mais de 100 tons
de azul, podia dizer:
este peixe é cerúleo
este mar é lápis-lazúli
esta planta é azul da Prússia
(o mesmo azul
da fase azul de Picasso).
Distinguia os tons do azul
mais intenso ao azul-piscina.
Agora, tantas décadas passadas,
tem a convicção necessária para afirmar,
acima de toda autoridade:
decididamente este azul pertence
aos azuis de Ticiano.

Canção para a cidade que sonha

Da janela se vê
o mundo que começa
na rua Milton Santos

Há tempo para o periscópio
tempo para a gentileza
na avenida Nise da Silveira

Olha a menina, a menina lá
com fome de vertigem
na ponte Garrincha

No memorial Bispo do Rosário
ninguém sai de fininho
à espera do inesgotável

Há o gol o gonzo o banzo
o engenho trapizonga

na casa de repouso Hélder Câmara

Estamos de passagem
no aeroporto Tom Jobim

Dizem que há alguém feliz
no edifício Sobral Pinto

Há tempo para uma nódoa
Há tempo para incêndio
na rua Dorothy Stang

No entanto, vencemos
todas as causas perdidas.
É porque há uma rua chamada
Carlos Drummond de Andrade
que podemos pensar assim

Agora o mundo começa
da mínima esperança
na avenida Pixinguinha

A janela quer
mais

Fabrício Marques

Nasceu em Manhuaçu (MG), em 1965. É autor dos livros de poesia Samplers (2000), Meu pequeno fim (2002), A fera incompletude (2011) e A máquina de existir (2018). Em crítica, publicou Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (2001) e Dez conversas (2004).

Rascunho