pedra de toque
1
alguns graus acima
na temperatura
do pensamento:
a palavra convulsa
da morte suspensa
dentro da boca
2
a palavra por dentro
das coisas acesas:
o silêncio é a pedra
de toque do nome
…
O objeto do desenho é uma ideia metamórfica.
Uma ideia concreta do movimento.
Uma forma viva.
Não a forma exterior das coisas: antes,
uma impressão provisória na retina.
Rente ao nervo, uma centelha.
O trânsito da energia latente.
No movimento pressentido,
a coisa vai se fazendo.
A mão devolve ao mundo
a forma que dele recebe.
E a árvore vai sendo seu próprio fruto.
…
Desconcerto
Havia uma casa com muitas portas e um pianista dentro. Recusava-se a tocar piano e continuava a ser pianista. Não sabia tocar ao gosto de seu tempo. Quase tudo, dizia-se, já estava feito, e seu instrumento estava fora de moda. Era preciso ser simples. Mas o pianista trazia no pulso algumas notas sem teclas. Começava aí seu tormento. Seus dedos se ajustavam mal à natureza do som. A rigor, nunca aprendera ou compusera sequer uma música, mas sabia tirar de ouvido o silêncio maciço das portas, o segredo das mulheres mudas. Durante anos a fio, dedicou-se à técnica de avançar com violência as mãos até as teclas e encolher os dedos a um milímetro de tocar a matéria. Dizia buscar a antinota que se extrai dos movimentos do ar entre dedo e marfim. Buscava a musicalidade do gesto que não se imprime nos tímpanos. Buscava degelar o mamute soterrado em sua mão esquerda. Era, de fato, um mau pianista.
*
Notas para não escrever a palavra amor
1. A palavra amor está oca. Reverbera tudo o que dela se avizinha.
2. Certo, todo nome é oco. Sua solidão faz lembrar qualquer coisa que se subtraia. Uma vizinhança impossível.
3. As coisas por se nomear são mais afeitas ao silêncio que ao sentido.
4. Por dentro do amor, falta uma letra.
5. Qualquer coisa que faça lembrar um poema
vaga
por dentro do amor
a morte sem nome
se move e não
cede
…
Entre dois silêncios
1. O dia suspenso
Espécie de segunda maldição babélica: o dia seguinte à catástrofe da dispersão, que ninguém pôde chegar a dizer. O mundo condenado ao recomeço sem desdobramentos. Como se tentássemos dizer qualquer coisa numa língua a que não se chega. Como se repetir e desaparecer culminassem no mesmo vazio. Como se aprendêssemos mal uma segunda língua e cada nova palavra apagasse sua correspondente primeira. Nesse novo idioma de rasuras, o esquecimento cresceria pelo território que resvalou para fora dos nomes. No limite, palavra nenhuma: uma só letra sem pronúncia, para sempre estrangeira.
2. O duplo do dia
Aprendido o segundo idioma, esqueceu-se por completo do primeiro. Aos poucos, esqueceu-se também do segundo. Quando tentou retornar ao primeiro, ficou aprisionado entre dois silêncios. Desmemoriado, parecia mover os lábios como se possível fosse dizer: “o silêncio é meu primeiro idioma. Fora desse idioma, nenhum idioma”.