Poemas de Desmond O’Grady

Leia os poemas traduzidos "Autorretrato de Reilly quando jovem", "O velho poeta pescando ao entardecer", "Propósito", "Origens", "O pedido do poeta", "A bordo de um navio" e "Alexandria"
Desmond O’Grady
01/12/2021

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Self portrait of Reilly as a young man

Through all the beads and missal mass of days
That bible-bound me down the litany
Of years, from matins child to compline man,
I fidget feared your power of cowl and collar.
And in my mea culpa student fear—
Obedient in the poor sight of chaste eyes—
I’d kneel from habit down in organ night
A monk-made man, toy of tonsured mind.

Came day when I—strolling the tall toll
Of the convent morning, slow as the swing of the bell,
A choir of woods on either side and centre
Ailsle of river in between—walked into
Break bread and bless wine sun in altar sky
And knew, for one quick consecrated catch
Of hallowed hour, the priest-made price and power
Of Mother Church and Mother Land and Mother.
Knew that if I was ever to ordain
My word in adult days, and have a Church;
Create salvation in creating freedom;
I must be priest-poet-layman to myself.

Autorretrato de Reilly quando jovem

Ao atravessar todos os ornamentos e missais dos dias
Aquela bíblia me amarrou à ladainha
Dos anos, desde as infantis matinas até o adulto complacente,
E inquieto temi o poder da batina e do colarinho.
E, na mea culpa de um estudante assustado —
Obediente sob a miopia dos olhos castos —
Eu por hábito me ajoelhava, nas noites, ao som do órgão
Um monge que se fez homem, diversão de mentes tonsuradas.

Chegou o dia em que eu — vagando sob as badaladas
Matinais do convento, lento como o balanço do sino,
Os coros de madeira nos dois lados e no corredor
Do meio com um rio ao centro — caminhei para
As migalhas de pão e do abençoado vinho no altar ensolarado
E soube, num imediato e consagrado impulso
De um santificado momento, o preço do sacerdócio e o poder
da Madre Igreja e da Pátria Mãe e da Mãe.
Eu soube que, se eu um dia viesse a ser ordenado
Para, adulto, espalhar minha palavra, na minha igreja;
Levando a salvação ao levar liberdade;
Eu precisaria ser o sacerdote-poeta-laico de mim mesmo.

The poet in old age fishing at evening

for Ezra Pound

Comes a time
When even the old and familiar ideas
Float out of reach of the mind’s hooks,
And the soul’s prime
Has slipped like a fish through the once high weirs
Of an ailing confidence. O where are the hooks
On this kind of dead?

Upright as love
Out on the tip of a tail of rock,
The sea ravelling off from the eye,
The line like the nerve
Straining the evening back from the clock,
He merges awhile into the lie
Of his own silhouette.

O velho poeta pescando ao entardecer

para Ezra Pound

Chega um tempo
Em que até mesmo as velhas e familiares ideias
Voam e escapam dos anzóis da mente,
E a grandeza da alma
Terá escapado como um peixe através dos outrora altos açudes
De uma debilitada confiança. Ah, onde é que estão os livros
Sobre esse tipo de morte?

Ereto como o amor
Bem na extremidade de um rochedo,
O mar ficando embaralhado aos olhos,
A linha, como um nervo,
Prendendo a tarde contra o relógio,
Ele por um instante se funde à mentira
De sua própria silhueta.

Purpose

I looked at my days and saw that
with the first affirmation of summer
I must leave all I knew: the house,
the familiarity of family,
companions and memories of childhood,
a future cut out like a tailored suite,
a settled life among school friends.

I looked face to face at my future:
I saw voyages to distant places,
saw the daily scuffle for survival
in foreign towns with foreign tongues
and small rented rooms on companionless
nights with sometimes the solace
of a gentle anonymous arm on the pillow.

I looked at the faces about me
and saw my days’ end as a returned ship,
its witness singing in the rigging.

I saw my life and I walked out to it,
as a seaman walks out alone at night from
his house down to the port with his bundled
belongings, and sails into the dark.

Propósito

Eu encarei minha rotina e soube que
aos primeiros sinais do verão,
precisaria deixar tudo o que conhecia: a casa,
a familiaridade da família,
os companheiros e as memórias da infância,
um futuro bem cortado como um terno de alfaiate,
uma vida estável entre os amigos da escola.

Olhei de frente para o futuro:
vi viagens para lugares longínquos,
vi a luta diária por sobrevivência
em cidades estrangeiras com línguas estrangeiras
e pequenos quartos alugados com noites
solitárias, por vezes aquecidas
por um meigo e anônimo braço no travesseiro.

Olhei para os rostos ao meu redor,
vi o fim dos meus dias como os de um navio regressado,
suas testemunhas cantando nos cordames.

Vi minha vida e caminhei para ela,
como um marujo que sai de casa e caminha
sozinho, para o porto, seus pertences na
mochila, navegando para a escuridão.

Origins

We walked out of ceaseless rain, out of
grey featureless towns into the long
light of the northern summer and found
the fields in the fullness of their season.
We were never the same again.

We surveyed panoramas of low stone walls
numerous and varied as old men’s wrinkles;
watched pigeons in piebald flocks
flap about farmyards as children
round church doors in Sundays;
trees looked familiar as locals
and country lanes held a nostalgic
urgency like desire.
When shall we see the same way again?

At one point I realised the sea
lay somewhere beyond all this—a mythology
of stones shored on its beaches;
realised we would some day each
have to pick up the sea shaped
stones one by one for personal
scrutiny: like an archeologist reading
fragments on an ancient site
or like a stranded sailor
hoping for a washed up bottle
with some sort of message in it.

Origens

Caminhávamos para fugir da chuva incessante, para fugir
das monótonas cidades cinzentas, indo para a duradoura
luz dos verões do norte, e nos deparamos
com os campos no ápice da estação.
Nós nunca mais seríamos os mesmos.

Inspecionamos os baixos muros de pedra,
numerosos e variados como rugas de um ancião;
observamos pombos em bandos malhados
batendo as asas sobre as fazendas, como crianças
em volta das igrejas aos domingos;
as árvores pareciam tão familiares quanto os locais,
e as alamedas denotavam uma nostalgia
tão urgente quanto o desejo.
Quando voltaremos a ver esses caminhos?

Em algum momento me dei conta que o mar
estava em algum lugar para além de tudo isso — uma mitologia
de pedras desembarcadas em suas praias;
me dei conta de que um dia nós
teríamos que colher as pedras moldadas
pelo mar, uma por uma, para um exame
minucioso: como um arqueólogo lendo
os fragmentos de um antigo sítio
ou como um marinheiro naufragado
ansiando por uma garrafa trazida pelas ondas
com alguma mensagem dentro.

The poet’s request

I ask
for a house
not a hovel
for pigs and cattle,
wide open, with dignity in welcome
and a chair
well cushioned with horsehair
at my table.

Sedelius Scottus, 9th c.

O pedido do poeta

O que peço
é uma casa
não uma choupana
para os porcos e o gado,
ampla, com uma entrada digna
e uma cadeira
bem acolchoada com crina de cavalo
na minha mesa.

Sedelius Scottus, Século IX d.C.

On board ship

I saw him only once,
on a ship out of Alexandria.
He sat alone, starboard side
in the shade, reading. His
distinctive profile reminded me
of those types you still encounter
in the Levant, in Ionia’s Smyrna,
in the old cafes of Alexandria.
His pigment shone polished amber,
his eyes shone like precious
stones you’d find in an Arab’s
jewellery or antique shop, Marrakesh.
He remarked me, foreigner also.
We didn’t speak but recognised
that, though we had much in common
silence, we each must sail separate
ways to our personal islands.
When, arrived, I rose to disembark,
he glanced up casually from his book:
The Collected Poems of Abu Nuwas.
Our eyes met in mutual acknowledgement,
like islands in an archipelago.
Wonder what cafe he sits at now
reading Abu Nuwas?

A bordo de um navio

Só o vi uma vez,
num navio para Alexandria.
Ele sozinho, sentado no deque
de estibordo, à sombra, lendo. Seu
perfil único me lembrou
aquelas figuras que ainda se pode ver
no Levante, na Esmirna jônica,
nos velhos cafés de Alexandria.
Sua pele brilhava como âmbar encerado,
e seus olhos, como pedras
preciosas das que você encontra num
joalheiro ou antiquário árabe em Marrakesh.
Ele me olhou, um outro estrangeiro.
Não nos falamos, mas soubemos
que, ainda que tivéssemos muitos silêncios
em comum, cada um de nós deveria navegar
seus próprios rumos para suas próprias ilhas.
Quando, ao chegarmos, eu me levantei para desembarcar
ele casualmente deixou ver seu livro:
A Poesia Completa de Abu Nuwas.
Nossos olhos se encontraram num mútuo cumprimento,
como ilhas de um arquipélago.
E eu penso, em que café estará ele agora
lendo Abu Nuwas?

Alexandria

You, Alexandria, shine now my last city
Of all, last of the many I’ve waxed
And wasted in, wandering. Some of us
Go through arrivals, lives, departures
While others dread to move for downfall.

Witness of so much dazzle and destruction
In wounding and curing time; yet still today
Sustainer of any prodigal with your achieved,
Apparently innocent, serenity. I realise now
You’re the city I’ve journeyed to all the time.
In you I begin again, not end; city of imagination.

Alexandria

Você, Alexandria, brilhe, minha última
Dentre todas as cidades, a última de muitas pelas
Quais vaguei, sem rumo, sonhando. Alguns de nós
Buscam as chegadas, as vidas, as partidas,
Enquanto outros temem cair no abismo.
Testemunha de tanto esplendor e destruição, de
Tempos de feridas e de curas; ainda assim é hoje
O alicerce de toda a exuberante conquistada,
Serenidade de ar inocente. Eu me dou conta agora
Que você é a cidade que sempre busquei.
Em você eu recomeço, não termino; cidade da imaginação.

Desmond O’Grady
O irlandês Desmond O’Grady (1935-2014) era visto, por seus compatriotas, como o mais conservador dos modernos, ou o mais moderno dos conservadores. Isso porque sua obra é um eterno equilibrar-se entre a antiga herança celta da Irlanda e a poesia modernista universal de autores como Pound e Beckett (dos quais foi amigo e discípulo). Viajante incansável, O’Grady amava o Oriente, e traduziu muita poesia árabe para o inglês.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho