Poemas de David Hinton

Leia dez poemas traduzidos "sem titulo"
David Hinton, poeta e tradutor americano
01/08/2021

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Morning light
comes. I
gaze into planetary
shadow deep as
blindness, and morning

light gradually
comes, elemental

forms too: desert,
mountain,
sky. Morning
light comes

and sight precisely
as it did
through its long
slow
beginnings, opening
this world

inside us: planetary
desert, mountain,
sky when

there were
no words, no
words for
any of this.

Vem a luz
da manhã. Eu
olho para a sombra
planetária, profunda como
a cegueira, e a luz

da manhã vem
aos poucos, e as formas

primordiais também: deserto,
montanha,
céu. A luz
da manhã vem

e observa tão precisamente
quanto tem feito,
através de seu longo
e lento
início, abrindo
este mundo

dentro de nós: deserto
planetário, montanha,
céu, quando

não havia
palavras,
palavras para
nada disso.

Days go on
like this. Sky-parched
grass and desert

sky. Humming-
bird. Mesquite seed-

fluff tight in its
cracked sun-
scoured packet

spills out
on the wind. Some-

times, I
try to remember
that distinction
between

what I
am and whatever
occurs next.

Os dias vão indo
assim. O céu-a relva-
ressecada e o céu

do deserto. Beija-
flor. Penugem das

sementes de capim
em suas rachadas
cascas de sol

espalhadas
pelo vento. Por-

vezes eu
tento me lembrar
da diferença
entre

o que sou
e o que virá
depois.

>>>

I feel too old, too
tired to make
sense of this empty
grassland desert

today. There’s a cold-
front approaching: distant
thunder, a few
scattered drops. I

lie back
here in these parched
grasses, wait to see

what rain
makes of it all.

Estou muito velho, muito
cansado, para
entender, hoje, a
imensidão deste

deserto. Uma frente-
fria se aproxima: trovão
ao longe, uns poucos
pingos de chuva. Eu

me deito
aqui, nesta relva
ressecada, e espero para ver

o que a chuva
fará disso tudo.

>>>

There’s nothing
much happening

here in my
life. First snow,
wind, a few
words, this evening

fire burning
low. It’s
exquisite. I can
see through
my death.

Não tem rolado
muita coisa

na minha
vida. A primeira neve,
o vento, umas poucas
palavras, nesta tarde

a lenha queimando
devagar. É
incrível. Eu
consigo ver através
de minha morte.

>>>

There they
were, my
sandals on sun-

warmed stone
outside the door, as if
someone had
come to visit. Is

there any choice
when you
meet your own

absence? I

welcome it
home, listen
closely. It’s telling
its life

story in sky’s
restless gusts and
swells. Soon it
moves on to wolf

spider, raven
wing-breath, a long-ago
peak’s broken-

granite silence. Old

talkative
friend: it has no
end of
things to tell.

Lá estavam
elas, as minhas
sandálias, se aquecendo

ao sol nas pedras
do lado de fora, como se
alguém tivesse
vindo me visitar. Resta

alguma chance
quando você
se depara com sua

própria ausência? Eu

dou boas-vindas a
ela, ouvindo-a
com atenção. Ela conta
a história de

sua vida, sob as
ondas e as rajadas
do céu. Logo ela
muda para a aranha

lobo, para a escuridão
das asas dos corvos, para o silêncio
há muito quebrado

de um pico rochoso. Velha

e falante
amiga: é infinito
o que há
para contar.

>>>

Wind tells its
story differently
each time. I

come often, wanting to
know all its
joys and griefs, its
dark thoughts. But that much
clarity isn’t

easy, and sometimes
wind grows
still, silent. Then I

sit alone, whorl tempests
through the dark

deep canyons of my
lungs, whisper gusts strung
out in
words. And if I
listen closely

enough, listen
until I hear my own
voice there

again, I understand
everything wind
says rinsing
itself through this

pine and granite
ridgerock canyon.

O vento conta sua
história de um jeito
diferente a cada vez. Eu

venho sempre, querendo
ouvir todas as suas
alegrias e tristezas, seus
pensamentos sombrios. Mas tamanha
limpidez não é

fácil, e às vezes
o vento fica
imóvel, em silêncio. Então eu

me sento sozinho, tempestades
girando pelos desfiladeiros profundos

e escuros dos meus
pulmões, sussurrando rajadas de vento
presas em
palavras. E se eu
ouvir com bastante

cuidado, ouvindo
até escutar ali a minha
própria voz

novamente, eu entenderei
tudo o que o vento
fala enquanto
se esfrega nestas

encostas de pinheiros e rochas
do desfiladeiro.

>>>

Mountains are
what they
are, and they’re
nothing like

me. I should
know that
by now. But here I am
again, gazing at

yet another
mountain, and all I

see is that sun-
scree face
memory hides, that earth-
plume sky-

ochre face
I wear
whenever I dance.

Montanhas são
o que
são, não se parecem
nem um pouco

comigo. Eu já
deveria saber
disso. Mas aqui estou eu
de novo, olhando

para outra
montanha, e tudo o que

vejo é aquela face-
granítica ensolarada
que a memória esconde, aquela
face ocre de

céu de terra-e-plumas
que eu visto
sempre que danço.

>>>

It’s a long way
from me to

you, so much
light and space. I
set out

here, nothing much
to say, mostly curious
what might
happen along
the way. A hummingbird-

moth slips in
through a window, curious,
confused by

all this
light and space.

É longo o caminho
de mim até

você, tanto espaço e luz. Eu
faço agora uma
proposta,

sem ter muito a
dizer, mais por curiosidade
com o que pode
acontecer ao longo
do caminho. Uma mariposa

escorrega pela
janela, curiosa,
e confusa com

tanto
espaço e luz.

>>>

Ochre cliffs water-
stained steel
blue, knife-edge
swifts and sky, wild

roses, ancient sun-
bleached oaks: things somehow
make light

visible. And aren’t these
eyes how
light sees it-

self? I’ve
never understood
masks—what they
hide, what

they reveal.

Penhascos ocre aço-
inoxidável azul
água, andorinhões
e o céu, flores

selvagens, velhos carvalhos-
desbotados de sol: as coisas às vezes
tornam visível

a luz. E não são nestes
olhos que
a luz vê

a si mesma? Eu
nunca entendi
as máscaras — o que elas
ocultam, o que

elas revelam.

>>>

These days I
don’t want this
life any-
more. I wait

quietly all day, then
walk away

toward a last ridgeline
lit in late
sunlight. How

easy it is
to be

what I
am not. This
life, or

some other, or no
life at
all: that lit

ridgeline
can’t see the least
difference
between them.

Não tenho mais
vontade,
ultimamente, de ter
a vida que tenho. Fico

quieto o dia inteiro, para no fim
sair caminhando em busca

da derradeira luz
do sol a iluminar
a cordilheira. Quão

fácil é ser
o que eu

não sou. Esta
vida, ou

alguma outra, ou
vida
nenhuma: a cordilheira

iluminada
não vê a menor
diferença
entre elas.

David Hinton
Nasceu em 1954, em Utah (EUA). É um dos mais respeitados tradutores de poesia clássica chinesa para o inglês, e também um grande ensaísta. Sua poesia tem forte influência tanto do taoismo e da poesia clássica oriental quanto da concisão de poetas norte-americanos como e. e. cummings e Robert Creeley.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho