Rio Cipó
contam que uma tromba d’água
primordial
varreu todas as coisas
aos exatos lugares
em que hoje estão
veja-se, por exemplo,
aquelas pedras imensas
quedam-se como monumentos
ao motor ancestral
que as deslocou
e imobilizou
atravessamos a paisagem
como se fosse uma era
e nos juntamos respeitosamente
a seu silêncio
a sua exatidão
…..
Vila de fechados
as pedras formam
e deformam
o caminho
os cães que nos escoltam
juntos
não compõem uma matilha
a vila é fechada em si
a vila é uma clareira
aberta na mata
todo corpo vivo
carrega consigo
um morto
seminus, semissubmersos
no curso desse rio
estamos a meio caminho
do que não somos
…..
Um domingo
cortamos a grande fruta em fatias imperfeitas
manuseáveis
apetecíveis
a gata toca gota a gota a água
que pinga da pia
com a pata
trazendo-a à boca
arrancamos o miolo dos pães
esculpindo formas
concretíssimas
abstratas
marca-nos
a tinta do jornal nas pontas apenas
de dois dedos
a tinta dos dias
que lavamos
com um só fio de água