Castrato
A um siamês de olhos vesgos
Ele vem da inocência idioma primeiro
enrodilhado em sua trama de pelos
tal uma cobra anódina sem defesa
sequer conhecedora do veneno
elixir dos rápidos acertos
deleita-se em afiar as unhas no tronco
da árvore e estirar os músculos
para prolongar a vida como um talismã
do tempo tão sagrado
quanto alheio ao esquecimento
como se o delicado motor de seu corpo
pudesse calar o furor dos desejos
e adormecer na raiz o pior dos tormentos
…..
O príncipe de Aquitânia
Tira a roupa e anda na noite branca
até a árvore onde faz sua forca
saudando os pássaros que chegam de viagem.
Na orelha um miosótis: “não me esqueça”,
como se a nudez não bastasse.
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Fogo negro em fogo branco
A Maurice Blanchot
Nada se diz por inteiro sem morrer no signo: fogo negro
em fogo branco, sem incendiar os lábios
e o silêncio que fala além das sílabas
como se sonorizasse cada fresta de sentido,
cada fosso aberto nas entrelinhas
que separam a carne do tempo e o tempo
da beleza que esvai no esquecimento.
Mesmo que caia por terra o céu da clarividência
e cego de sol o dia escureça
na trégua entre um olhar e outro
os sentidos mortos aprendem a respirar de novo:
fogo negro em fogo branco, essa língua neutra
que faz o tempo sinuoso e a verdade branca
da existência que a palavra sente sem dizê-la
como um sintagma que cintila ao ser devorado
pela noite. Ainda assim terá valido a pena
não dar de ombros ao assombro e deixar queimar
nas mãos (nos olhos) o signo: fogo negro em fogo branco.
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Dos diários de Kafka
Conheço meus deveres e luto além das forças
como no sono quando as pernas não obedecem
o corpo sentindo-se parte de algo imóvel
tal uma estátua que pudesse respirar
e ter o coração batendo sob o gesso.
Estou em meu quarto e não ouço quando
me chamam (no trabalho é a mesma coisa):
só me sinto leve quando o desejo segue
seu curso inviolável nos sulcos do devaneio.
Sou eu mesmo nesse movimento e sequer
me pergunto aonde me leva como quem
desliza (a cabeça erguida) rumo ao desfiladeiro.