Poemas de Clarissa Macedo

Leia os poemas "Decoro", "Do que é adiado", "Desposada" e "Capadócia"
Clarissa Macedo, autora de “O trem vermelho que partiu das cinzas” Foto: Ana Reis
01/01/2022

Decoro

mulher precisa ser limpa muito limpa
mamãe dizia como se mulher já nascesse
suja
Lilian Sais

Feche as pernas
use esmalte claro
desça as escadas sem olhar pra baixo
pegue os talheres de fora pra dentro
eleve a postura
não fale alto:

tudo isso mãe ensinava
quando eu, mocinha, não aprendia.

Mamãe, de outra época,
achava revolucionário usar minissaia
e ir à boate sozinha
— mas sempre de pernas fechadas, postura ereta
e um rombo farto no pulmão.

Curioso mamãe ascender sem o ar que tanto procurei.

Até hoje acredito que mamãe foi revolucionária,
afinal, forjou-me na farpa das que comem areia sem pedir licença,
sem nutrir um só perdão.

Do que é adiado

Minha mãe não me viu ir a Barcelona.
Ela, que me ajudou com a mala,
me viu partir
mas fui a outras terras;
talvez porque guardasse o desejo de que ela fosse comigo
talvez porque, enfeitiçado, o sonho aumenta moinhos
e passeia entre tristes cavaleiros.
Talvez eu nunca vá a Barcelona
e guarde a valsa-cisne que dançamos,
a mala e Gaudí
no fosso da memória,
essa cavalaria que grita enquanto de dor nos calamos.

Desposada

Quem poderia amar alguém assim
que usa meias compressivas
e seca num domingo à tarde.

Quem poderia cruzar a América
antes das navegações?

Quem, quem poderia
pegar num livro como fosse gente
armar ao sol uma lona
deixar virem os animais
e habitar todos,
como a rosa da infância
como a cúpula dos ancestrais
como sonhos que piscam
e nos acordam para o festim
para as meias compressivas
que não me deixam amar.

Capadócia

Ando a fim de todo mundo:
do motorista do uber
do ex-professor, do músico,
do médico, do porteiro,
de um de lá de São Paulo
do vizinho e do vendedor de carros.

Ando a fim de todo mundo
e, inúmero,
amo o planeta inteiro
essa sucursal
uma flor de bananeira
bem no pico do meu ventre —
a cortiça dessalgada
pela trompa de um incêndio.

Clarissa Macedo

Nasceu em Salvador (BA). Publicou O trem vermelho que partiu das cinzas (2014/2021), Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Braskem Nacional da Academia de Letras da Bahia, 2014; traduzido ao espanhol, Madri, 2017, e Peru, 2021) e O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição (2019). É a idealizadora do Encontro de Autoras Baianas – Marcas Contemporâneas e do Sarau Cartografias. Gerencia o Portal da Palavra.

Rascunho