O poema enfolha
Seria de perguntar se as flores, na vida como nas fábulas, deveriam mesmo pensar e falar ou terem seus nomes de gente dados — na ciência ou fora dela — por alguma das gentes: margarida, verônica, violeta, rosa e outras tantas catalogadas. E se deveriam ainda, cândidas ou venenosas, florescer em metáfora, personificando-se como, por exemplo, num videoclipe do The Wall. Quem sabe um jardineiro diria que as flores são seres como os outros, mas sem carência de nome com que os humanos insistem sempre em nomeá-las: a maria-sem-vergonha, a clívia, a dália, a magnólia, a marianinha, a vanda e por aí vai. Aquele nome é um exemplar da espécie bellis perennis ou uma tia que morava no interior e nos visitava na primavera? E no caso das folhas, elas também não precisariam dos homens, como estes delas para unguentos, compressas, garrafadas e chás, tudo para curarem o corpo, o tédio, a falta de vitamina e outros ais, ou protegerem alguém de algum inimigo com a espada de São Jorge, o abre caminho, a arruda, o comigo-ninguém-pode? Seria de perguntar antes de tudo se não caberia ao homem aprender algo com elas, a metamorfosear-se com inteligência, fazendo voar o seu pólen para fecundar no estio, ou mais precisamente, a agomar-se na alvorada. Se não seria mais justo para ele brotar, desdobrar-se e crescer — plantado ou não na terra — até que seu dom domado pelo arâmio desse de fato algum fruto. Ou pelo menos florescesse cada vez com um formato diferente dependendo da estação, do solo ou da forma como se poda o enxerto. Talvez outra língua aí nascesse ou fosse de novo possível. Daí a folha de sete-copas escreveria em vermelho no chão como João Machado Gaio, discípulo de Domenico Vandelli, anotou um dia em sua Viagem Filosófica à Serra da Ibiapaba, sobre a abundância de urucum, cujo escarlate se devia apreciar com o da cochonilha. Ou algum outro diria que o ocre e o marrom escuro da mistura do cipó jagube com a chacrona, dando o daime, faz de viajar a mente e conversar com espíritos. Ao invés de falar como o homem a planta a língua enfolha, assim como nas folhas se escrevem as plantas, indiferentes ao mundo, e estas naquelas imprimem dizeres nos seus feixes vasculares e seus secretos códigos vegetais. Assim como as terras reviradas dão adubo à última flor do Lácio distante além do Atlântico com húmus, esterco, ou cinzas, neologismos e outros segredos do plantio em terras tropicais. Ou como dão frases suas raízes trançadas umas sobre as outras, ou suas linhas encadeadas, seus textos são mesmo, acreditem em mim, verdadeiros quintais. Que a planta não seja um animal de cabeça para baixo, mas que o homem seja uma planta de cabeça virada para cima. Ou que o universo inteiro se molde dentro da casca de uma noz. Que a natureza nos ensinasse assim outra linguagem, a do primeiro grão, não o da ilha que é terra com água por todos lados, mas o da semente com terra por cima, ao lado e embaixo. A folha vem da árvore e nela se grafa o poema. É uma cortesia esse seu papel, assim como o bem que faz a clorofila. No princípio não era o verbo? E o livro sagrado escrito com tinta verde ainda ensinaria que a planta, embora gente, não carece de se humanizar, mas que o homem, embora homem, é quem precisa urgentemente aflorar. Só dois seres já desvendaram o mistério genético dessa estranha sabedoria agrícola, o que capina e o que escreve, os dois únicos que não a passam a folha para trás, limpando o terreno para germinar o solo, semeando não na natureza a cultura, mas colhendo esta daquela. A árvore está no chão, mas também acima dele e se abrindo para o céu. A saber que o poeta sua terra com a pá lavra. E que a planta nasce tão cedo vem a luz da manhã. E que de sua boca brota o verso tal flor que se abre à fala de um Deus: o poeta é um xamã.
…
Aurora
Como num quadro de Francesco de Mura
ou num afresco de Guercino
para o Casino di Vila Boncompagni
você, titânide, nos chega assim todos os dias
feito uma deusa do amanhecer.
Tal qual Eos ou Ushas
a levantar o véu da noite
em seu lugar dando a luz à luz solar
ou esfumando na sua fronte ou alvorada
os matizes róseos ou violáceos
que suavemente se tocam e
amorosamente se enlaçam
na iminência de um terceiro tom
(como no poema de Drummond
só que mais leve e menos trágico)
tudo assim como o panorama de uma cidade
ou como quando a noite dorme
e então a vida acorda
lembrando certas tomadas
(ou beldades)
de Roma na “Grande Beleza”
de Paolo Sorrentino.
“É a minha filha”,
vaidoso eu diria
em qualquer lugar
mil vezes ou mais
empostando a voz
só para parecer um titã, um tal Hiperião
porque você merece bem mais
que um pai com uma voz comum
“mas a vida sabe o que faz”,
eu mesmo me consolo depois de pensar
na beleza de tua graça,
“dedos-pétalas-róseas”.
E ao vislumbrar teu nome
descubro um fenômeno boreal
e aprendo rápido uma lição:
que na vida nem sempre são necessários
holofotes ou pirotecnia
para que lindas cores surjam mescladas no céu.
Se Iuri Gagarin tivesse te conhecido
naquela manhã do dia 12 de abril de 1961
ele certamente diria além de que “A terra é azul”
e “Como é maravilhosa a terra”,
“Como é bom nascer todos os dias”,
ou melhor, “Como é bonita a Aurora”,
ou ainda “É esse mesmo o teu nome”.