canções de naufrágio
I
crio na parte subterrânea da língua
a palavra mais antiga da história para despertar peixes
e afogar marinheiros em cordões de areia.
II
há uma formação rochosa
submersa
que conta sobre a ordem do tempo
o surgimento da terra
conta sobre a arquitetura da casa
a forma que teus olhos tomam quando a fome aumenta
e as algas peixes pequenos animais feitos de sal
confrontam a ideia de naufrágio em livros de anatomia
sobre a órbita dos teus olhos
como linhas de arrecifes
correndo paralelas à costa deste continente ainda sem nome.
III
o corpo emerge na maré baixa
não há rotas não há mapas cartas de navegação
penso na tristeza do espanto de se morrer
não no mar, mas naquilo que antecede o sopro
o fogo a marca da imutabilidade na casca frágil.
conto até três
a respiração como a de uma mãe sem nada nos braços.
recrio o mundo
submerjo o mundo
entoo canções submarinas.
durmo um sono longuíssimo no sétimo dia.
…
observo a talha pelo canto do olho
como se pudesse não repor a água e seguir o dia
sem sede ou culpa.
às vezes penso que da torneira
escuto jesus dizer baixinho:
— é vinho, beba, minha filha.
e eu crente e eu casta
abro a torneira e rezo para que seja água
pra que não haja mistério
mas somente essa certeza aguda
de que a água será sempre água
que o vinho será sempre santo
e o mistério apenas cantoria
pendendo da boca miúda dos pássaros.
…
primeiro se cozinha a batata
mas não muito
a ponto de que seu murro a desfaça
levo murro às vezes
levo murro todos os dias
ninguém
quase ninguém se preocupa que eu me desfaça
no fundo do meu corpo morava essa fala
morava um tentáculo este órgão tátil
como se a boca represasse a vida marinha
como se a boca como se a boca
represasse as palavras
como se no fundo da boca morasse um corpo.