Poemas de Anne Waldman

Leia os poemas traduzidos "Triolé", "Lá fora", "A monja Abutsu", "Depois de “Les Fleurs”" ,"Cochilando na sombra do dia", "Na sala onde jamais se enluta" e "Neve"
A poeta norte-americana Anne Waldman
21/04/2016

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Triolet

A perfectly clear liquid like water
flows out of the spine

Last night in the hospital, this is what I saw

I don’t know where the fluid sits
& what its design

A perfectly clear liquid like water
flows from her spine

Does it move from the brain in a line?

The cool doctor draws it out with a straw

A perfectly clear liquid like water
flows out of the spine

Last night, in the cold hospital, this is what I saw. 

Triolé

Um líquido perfeitamente claro como água
flui para fora da espinha

Noite passada no hospital, foi isto o que eu vi

Eu não sei onde esse fluído fica
& o que ele projeta

Um líquido perfeitamente claro como água
flui da espinha dela

Será que se move desde o cérebro em uma fila?

O tranquilo médico o extrai com um canudo

Um líquido perfeitamente claro como água
flui para fora da espinha

Noite passada, no hospital frio, foi isto o que eu vi.

…..

Out there

You say
This is all
there is
I say
nothing much
to help
Say this
Say what?
It is
what you say
it is
And it is
everything
You teach me
this is
all there is
And this is
all there is
is everything
A night back
there where
a head
is turning
to kiss air
is all there is
is everything
Out there
stars are dark
The motel is quiet
Bob
One of the colors
is missing
from our world

Lá fora

Você diz
Isso é tudo
o que é
Eu não digo
nada que ajude
muito
Diga isso
Diga o quê?
Isso é
o que você diz
isso é
E isso é
tudo
Você me ensinou
que isso é
tudo o que é
E isso é
tudo o que é
é tudo
Uma outra noite
ali onde
uma cabeça
está se virando
para beijar ar
isso é tudo o que é
é tudo
Lá fora
estrelas estão escuras
o hotel está tranquilo
Bob
uma das cores
está faltando
em nosso mundo.

…..

The nun Abutsu

Japan, d. circa 1283

sea wind
chilly on me
snow rides down

each night
look up
that moon is smaller

I wane
too
as I write

not sadness
brings me
to words

but how everything
resembles something else
is an exultation

enormous waves
rise —
flowers! flowers!

the road
East
is a song

A monja Abutsu[1]

Japão, morta por volta de 1283 d.C.

vento do mar
me traga refresco
a neve vem descendo

a cada noite
eu olho para o alto
a lua está menor

eu encolho
também
enquanto escrevo

a não tristeza
me leva
às palavras

mas como tudo o que existe
faz lembrar alguma outra coisa
é um regozijo

ondas enormes
se elevam —
flores! flores!

a estrada
para o leste
é uma canção

…..

After “Les Fleurs”[2]

Paul Éluard

I am 20 years old and holding on
Knowing I’m still young, I love you world

I am not 20 years old. My past is deaf, deaf

I dream a life of crystals and lie down in the grass

You think I’m crying; I don’t
Don’t hurt me — let me be

My eyes a strength the color of my wounds,
Love, what is the sun when it rains?

I tell you there are things as true as this story

When I close my eyes I kill you.

Depois de “Les Fleurs”

Paul Éluard

Eu tenho 20 anos e vou levando
Sabendo que ainda sou jovem, eu te amo, mundo

Eu não tenho 20 anos. Meu passado é surdo, surdo

Eu sonho com uma vida de cristais e me deito na grama

Você pensa que eu estou chorando; eu não estou
Não me machuque — deixe-me ser

Meus olhos uma força da cor de minhas feridas,
Amor, o que é o sol quando chove?

Eu te digo que há coisas tão verdadeiras quanto esta história

Quando eu fecho os meus olhos eu te mato.

…..

Napping in the shadow of day

The house is still that shook with glee
Where did it go?
The shades pulled down
No one to phone
Silence the music, the clock
Baby is sleeping like a locket
His body ran down
Hush when you visit
Don’t knock nor fidget
The day sits waiting
You must too
Hush he’s lightly breathing

Cochilando na sombra do dia

A casa está quieta, aquela agitação de alegria
Para onde ela foi?
Desceram as sombras
Ninguém para telefonar
Em silêncio a música, o relógio
Bebê dormindo como um medalhão
Seu corpo desligado
Quietude quando você visita
Não bata nem se incomode
O dia sentado esperando
Você também precisa
Se aquietar ele respira delicadamente

…..

In the room of never grieve

register
& escape
the traps

a last judgment

cheetah under her skin

one window on the sunny side

still life with stylus
w/rancor
still life w/daggers
size of a postcard

no harm will come to the dolls
of which I am the queen

ghosts gather —
scald
seethe

Na sala onde jamais se enluta

registrar
& escapadas armadilhas

um julgamento final

leopardo sob a sua pele

uma janela do lado ensolarado

natureza morta com buril
c/rancor
natureza morta c/punhais
tamanho de um cartão postal

nenhum mal acontecerá às bonecas
das quais eu sou a rainha

fantasmas se reúnem —
escaldar
ferver

…..

Snow

Snow comes down on New York City
the way I imagine the head touches the heart
bending over so gently you hardly notice
your whole body changes clothing
then moves on decisively, a temperature shift
so that you know now how you go
and what you feel is together in itself
a kind of batter pouring into the universe
you will later eat before it is cooked.

Neve

a neve cai sobre a cidade de Nova York
do jeito que eu imagino a cabeça tocar o coração
curvando-se tão delicadamente que você mal se dá conta
todo o seu corpo muda de roupa
então decididamente se move, uma mudança de temperatura
de forma que você agora sabe como irá
e o que você sabe está junto em si mesmo
um tipo de massa em enxurrada para o universo
você irá mais tarde comer antes de cozida.

NOTAS

[1] A monja Abutsu (c. 1222-1283), cujo nome verdadeiro é desconhecido, foi uma intelectual, escritora e poeta de origem nobre do Japão medieval, do período da dinastia Kamakura. Ela ficou famosa não só pela qualidade de sua obra, mas também por ter conseguido ocupar, com destaque, espaços predominantemente masculinos.

[2] Inspirado no poema do surrealista francês Paul Éluard (1895-1952), cujos últimos versos são: “Eu te asseguro que há coisas tão claras quanto esta história de amor; se eu morrer,/eu não mais saberei quem é você.”

Anne Waldman
Desde que despontou na cena poética de Nova York, nos anos sessenta, Anne Waldman (1945) ficou conhecida por sua poesia performática. Não que seus poemas não se saiam muito bem, no papel, para serem lidos em silêncio. É que ela se dedicou muito a declamá-los (às vezes cantando) em voz alta, frequentemente em companhia de músicos, de dançarinos e até de artistas plásticos. Muito próxima de Allen Ginsberg, a poeta é com frequência relacionada aos beats e também à segunda geração da New York School. Mas a verdade é que Anne Waldman, com suas múltiplas influências (que vão desde compatriotas como Robert Creeley, Lawrence Ferlinghetti e Kenneth Koch, até poetas distantes, no tempo ou no espaço, como clássicos japoneses e surrealistas franceses) não é facilmente classificável. No fim das contas, o que Waldman tem é uma voz bastante peculiar, de alguém que consegue transitar bem tanto pelo lirismo mais puro quanto por temas sociais e políticos (embora, para esta pequena amostra, eu tenha dado preferência ao lirismo).
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho