Poemas de Andrea Zanzotto

Leia os poemas traduzidos "Distância", "Quanto tempo", "Lá amiúde na aurora", "Atol" e "As casas que caminham sobre as águas"
Andrea Zanzotto, poeta italiano
01/12/2021

Tradução e seleção: Patricia Peterle

Distanza

Or che mi cinge tutta la tua distanza
sto inerme dentro un’unica sera

Odora il miele sulla mensa
e il tuono è nella valle,
molto affanno tra l’uno e l’altro

Io sono spazio frequentato
dal tuo sole deserto,
vieni a chiedermi dove
gridami solitudine

E questo azzurro guasto di sgomenti
e di luci di monti
per sempre m’ha appreso a memoria.

Distância

Agora que me cinge toda a tua distância
estou inerme dentro de uma noite só

Cheira o mel sobre a mesa
e o trovão está no vale,
muito afã entre um e outro

Eu sou espaço frequentado
pelo teu sol deserto,
vens me perguntar onde
grita-me solidão

E esse azul gasto de estarrecimentos
e de luzes de montes
para sempre me aprendeu de cor.

Quanto a lungo

Quanto a lungo tra il grano e tra il vento
di quelle soffitte
più alte, più estese che il cielo,
quanto a lungo vi ho lasciate
mie scritture, miei rischi appassiti.
Con l’angelo e con la chimera
con l’antico strumento
col diario e col dramma
che giocano le notti
a vicenda col sole
vi ho lasciate lassù perché salvaste
dalle ustioni della luce
il mio tetto incerto
i comignoli disorientati
le terrazze ove cammina impazzita la grandine:
voi, ombra unica nell’inverno,
ombra tra i dèmoni del ghiaccio.
Tarme e farfalle dannose
topi e talpe scendendo al letargo
vi appresero e vi affinarono,
su voi sagittario e capricorno
inclinarono le fredde lance
e l’acquario temperò nei suoi silenzi
nelle sue trasparenze
un anno stillante di sangue, una mia
perdita inesplicabile.

Già per voi con tinte sublimi
di fresche antenne e tetti
s’alzano intorno i giorni nuovi,
già alcuno s’alza e scuote
le muffe e le nevi dai mari;
e se a voi salgo per cornici e corde
verso il prisma che vi discerne
verso l’aurora che v’ospita,
il mio cuore trafitto dal futuro
non cura i lampi e le catene
che ancora premono ai confini.

Quanto tempo

Quanto tempo entre o grão e entre o vento
daqueles sótãos
mais altos, mais extensos que o céu,
quanto tempo as deixei
minhas escritas, meus riscos murchados.
Com o anjo e com a quimera
com o velho instrumento
com o diário e com o drama
que interpretam as noites
revezando com o sol
as deixei lá em cima pra que salvassem
das queimaduras da luz
o meu teto incerto
as chaminés desorientadas
as sacadas onde caminha endoidado o granizo:
vocês, sombra única do inverno,
sombra entre demônios do gelo.
Traças e borboletas daninhas
ratos e toupeiras indo ao letargo
pegaram-nas e refinaram,
pra vocês sagitário e capricórnio
apontaram as lanças frias
e o aquário mitigou em seus silêncios
em suas transparências
um ano pingando sangue, perda
para mim inexplicável.

Já pra vocês com tintas sublimes
de frescas antenas e tetos
se alçam ao redor os dias novos,
já alguém se alça e sacode
os mofos e as neves dos mares;
e se vou a vocês por cordas e saltos
rumo ao prisma que as discerne
rumo a aurora que as hospeda,
meu coração cravado de futuro
não zela por raios e correntes
que ainda pressionam nas fronteiras.

Là sovente nell’alba

Là sovente nell’alba
dall’inferno mi destava
il rombo lieve e il tremito
degli azzurri vulcani.
Tra i monti specchi eccelsi del primordio
impigliava le gracili corna
il cervo nato dalla neve;
pullulavi alle finestre
lava di primavera,
vivente a me scendevi tra le spire
degli evi deformi.

O golfo della terra
a me noto per sempre,
dalle cui pieghe antiche
spogli d’ombre balzano eventi;
freddo rifugio cui gl’insoliti
fiumi cingono il grembo,
i tuoi sparsi elementi sono
la mia solitaria gloria,
i raggi del tuo sole
non maturano che neve.
Ma ancora negli abissi
tuoi cercarti m’è caro,
in ogni tua forma giaccio sepolto,
del mio sangue ogni tua fonte esulta.

Tu clemente ricorderai le immagini
della mia vita.

Lá amiúde na aurora

Lá amiúde na aurora
do inferno me acordava
o leve estrondo e o trêmito
dos vulcões azulados.
Nos montes grandes espelhos do início
enredava os frágeis chifres
o cervo nascido da neve;
pululavas nas janelas
lava de primavera,
viva pra mim descias entre as espiras
de tempos deformes.

Oh golfo da terra
que conheci pra sempre,
de cujas dobras antigas
nuas de sombras pulam eventos;
frio abrigo a que os insólitos
riachos cingem o ventre,
teus elementos dispersos são
minha solitária glória,
os raios do teu sol
não maturam senão neve.
Mas ainda me é caro
buscar-te em teus abismos,
em cada tua forma jazo enterrado,
do meu sangue toda tua fonte exulta.

Tu clemente lembrarás das imagens
da minha vida.

Atollo

Un sole che con oziosi giri
sedusse e divorò l’ombra del mondo
e crebbe sui giorni e sui mesi
già stringe il muro ed il cortile
scruta le differenze d’ago
della sabbia dei piccoli castelli
e brilla da mille bandiere
da scudi e da porte
dagli angoli dei morti.
Tra quei precari monumenti,
io là vi collocai, fragili Italie
i cui minuti segmenti
avido sale stinse,
la brace là s’indovina
dell’insetto e del libro,
là tra giochi vuoti e pericoli
al silenzio si appoggiano le clausole
della mia memoria infelice
e monti decrepiti affidano
alla sabbia insensibili sfaceli,
la sabbia senza parsimonia
colma i volti e i sorrisi
spegne l’oro dei suoni.

Già il sole penetra per le
cieche gallerie delle finestre
sugge e scinde gli ultimi
legami della mia sostanza.

Atol

Um sol que com ociosos rodeios
seduziu e devorou a sombra do mundo
e cresceu nos dias e nos meses
já abraça o muro e o quintal
sonda as diferenças da agulha
da areia dos pequenos castelos
e brilha das tantas bandeiras
de escudos e portas
das esquinas dos mortos.
Nesses precários monumentos,
eu lá as coloquei, frágeis Itálias
cujos pequenos segmentos
sal voraz desbotou,
a brasa lá se adivinha
do inseto e do livro,
lá entre jogos vazios e perigos
no silêncio se apoiam as cláusulas
da minha memória infeliz
e montes caducos confiam
à areia insensíveis esfacelos,
a areia sem parcimônia
enche os rostos e os sorrisos
apaga o ouro dos sons.

Já o sol penetra por entre as
cegas galerias das janelas
suga e cinde os últimos
elos da minha substância.

Le case che camminano sulle acque

Le case che camminano sulle acque
e che vogliono dirmi
benvenuto, se scendo dalla sera,
le case che camminano sulle acque:
o tu che accetti la stretta dolce dei canali
e che ti lasci guardare
in tutte le tue nude grazie
fin che il mio pianto ti veli
fin che l’amor mio non ti renda
primavera delle mie parole

Mi dicevano ieri
che c’era posto anche per me
nella barca dal più bel tragitto
nel fiume dal più bel mantello;
ch’ero guarito coi capelli a bosco
d’un cielo azzurro e prossimo,
con le correnti intrecciate alle dita;
mi dicevano ieri
che dalla morte mi rieducavi

Le case che mi chiamano dalle acque:
forse un invito mi sarà
qui concesso, e forse il sonno;
vedrò tutta la mia fiducia
tutto lo spazio colmarsi di rive,
di fiumi come celeri conquiste,
d’acqua immenso vigore e moto adulto

Sono andato laggiù col fiume,
in un momento di noia le barche
le reti si sono lasciate toccare,
ho toccato riva con la mano.

As casas que caminham sobre as águas

As casas que caminham sobre as águas
e que querem me dizer
bem-vindo, se eu for descendo da noite,
as casas que caminham sobre as águas:
oh tu que aceitas o abraço doce dos canais
e que te deixas olhar
em todas as tuas nuas graças
até que o meu pranto te vele
até que o amor meu não te torne
primavera das minhas palavras

Me diziam ontem
que havia também um lugar pra mim
no barco da mais bela trajetória
no rio do mais belo manto;
que eu sarara de cabelo ramado
de um céu azul e próximo,
com as correntes trançadas aos dedos;
me diziam ontem
que da morte me reeducavas

As casas que me chamam dessas águas:
talvez um convite me seja
dado aqui, e talvez o sono;
verei toda a minha confiança
todo o espaço se encher de margens,
de rios como aceleradas conquistas,
de água imenso rigor e moto adulto

Fui lá embaixo com o rio,
em um momento de tédio os barcos
deixaram as redes se tocarem,
toquei a margem com a mão.

Andrea Zanzotto
Ao poeta italiano Andrea Zanzotto (1921–2011) poderiam ser dadas muitas etiquetas, de experimental a poeta bucólico, a hermético tardio. Na verdade, o que chama a atenção na incrível produção de Zanzotto é a sua capacidade de ser sempre ele-mesmo e sempre outro. A paisagem é um elemento central nessa obra, que se estende dos anos 50 até a primeira década de 2000; na verdade, são as relações estabelecidas com a geografia, estratificações de histórias e de formas de vida. Relações que reverberam no sujeito e nele incidem. Outro aspecto é o mosaico citacional que vai da tradição italiana a seus contemporâneos — Montale e Sereni —, a poetas como Rimbaud, Lorca, Celan, Hölderlin e Rilke. Uma linguagem que não se cristaliza, que se coloca em jogo e surpreende ao acolher outras linguagens como a científica ou a da publicidade. A 7Letras e a Rafael Cometi Editor acabam de lançar Primeiras paisagens, que reúne toda a primeira fase da poesia de Zanzotto.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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