Leitura ótica do leitor
Ao livro que o lê,
olho ou pátio
(à sua escolha)
o instante é uma escotilha,
o presente o mirante.
De relance,
qualquer realidade
é um folhear
inquietante.
Todo autor é
absurdo deus
ante a pétala brusca
ou a pátina de si.
O mais é o excesso
de leitor, leituras
que o real, às tantas
páginas, sempre
e nunca procura.
…
Os argonautas
Os mortos com seus sapatos ébrios.
Quem os detém? Beberam os licores
da perda e andam por corredores
com suas certezas de pó, desafagos,
suas bíblias da inércia.
Parecem dizer algo, anúncio de verme.
Às vezes, cismam e por instantes
os mortos folheiam o vento, habitam
uma fotografia, pesam uma lágrima.
Não os tivessem tocado, e o batismo
geral ou a relva inconcebível
voltariam a arquivá-los
numa lua de esquecimento.
…
Leitura do Morto
O morto e seus pertences concisos:
o imenso cais de madeira exata na sala
os dias inúteis na próxima agenda
e a eternidade, salário;
de resto um morto dispensa comentários.
Leitura da Insônia
O telhado,
esta quilha
que me lê
muito antes
do leite da manhã
dos garis
que catam
restos de salário
e dos homens
de rara alvenaria
esses pássaros
que trocam o vôo
pelo dia.
…
Composição Barroca para um Amor
Arde o precoce amor como uma pira
de inextinguível fogo, onde aurora
alguma se aventura a sazonar
o fruto que se guarda ou recua
ante a mordida do real ou do visível.
Este amor, (como queima a metáfora!)
tão falto de cercanias, tão vário
que sequer disfarça o que ultrapassa
em sina, em sede, em suspensa safra
de não colher tanto e ser colhido,
este amor ainda assim não se basta.
Quer contemplar e ser contemplado
na febre ressentida que põe a arder
um reino alheio a si, ao amado.
s/ título
Rosto que persiste na memória
escada súbita, idéia fixa
de um amor que se dobrou
de joelhos em um homem:
céu de olhos que me fitam
do paraíso móvel da carne
que um deus moldou ante
a vigilância do delírio
ou lírios que transpõem
um algo de bräille em flor:
feixe de gestos retidos
da seara de quem ama.