Poemas de André Luiz Pinto

Leia os poemas "Cabra", "Luneta" e "Nada mais terrível que criança"
André Luiz Pinto, autor de “Mas valia”
02/01/2021

Cabra

Falta pouco para dar tiros
da torre do relógio.
Pouco para chutar
os cachorros
do quintal.
Só falta um dedo
para depois me arrepender
e olha que tentei
diversas vezes.
Penso assim após
a batalha: em quem,
além de mim,
você acreditou;
com as palavras
de quem, além das minhas,
você se deitou
largou o garoto
de lado para
que ele lutasse
contra seus inimigos
e não os dele.
Porque hoje só
acredito em palavras
que não acabem
num cartório; em palavras
como pedra, bola, garoto, sol.
Poucas são as palavras que mexem comigo.
Palavras conseguem magoar
quando se lê que a polícia passou
o pente-fino e, mais ainda,
que alguém me feriu
de morte o coração.

…..

Luneta

A luneta foi dada pelo pai.

Não que eu quisesse,
acho que meu pai também não pretendia,
mas por se tratar de um cano apontando para o céu,
eu a achei fálica demais!; se bem que,
num apartamento, uma luneta só aponte para o teto.

Talvez por se tratar de uma luneta velha,
de um cajado dado de herança,
ela seja frágil e insondável,
como seu antigo proprietário, junto ao filho,
quando, durante noites a fio,
os dois se distraíam com as estrelas.

…..

Nada mais terrível que criança

Nada mais temível que criança.
Recém-nascido nem me fale.
Nada mais aguardado que criança.
Você crê que pode alguma coisa
mas não pode nada. Vê-la já dá saudade.
E quando finalmente dorme,
anda-se na ponta dos pés, de costas,
qual agricultor maia, fazendo de tudo
para não despertar a ira de Deus.

André Luiz Pinto

Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro (RJ). Doutor em Filosofia pela UERJ, é autor, entre outros livros, de Flor à margem (1999), Ao léu (2007), Mas valia (2016) e o mais recente, Na rua, em parceria com Armando Freitas Filho (2019). Sua poesia foi tema nos documentários André Luiz Pinto: Prazer, esse sou eu e Autobiografias poético-politicas, ambos de Alberto Pucheu.

Rascunho