Tudo que trago para hoje
Tragam-me a cúrcuma, o alecrim e um livro de poemas
daqueles mais distantes de mim. Tragam-me as fotografias
que não tirei na Tuol Sleng, em Phnom Penh, no Camboja.
Tragam-me notícias dos que moram em Paro Taktsang,
no Butão. Há muitos tigres crescendo naquela caverna?
Como eles estão? Tragam-me os poetas cantadores
da Amazônia para me despertarem
e acalentarem a cada noite o meu sono
com tudo o que eles têm para nos contar. Tragam-me a calma
para subir o Monte Fuji como aquele caramujo
de Bashô e para visitar os templos de madeira, seus sinos e jardins de pedra.
Tragam-me o Kilimanjaro, o Himalaia, uma aldeia qualquer
no Tibete, em que eu consiga escutar histórias de vidas
inimagináveis em uma língua da qual eu não entenda nada.
Tragam-me o Xingu, os indígenas, seus modos de vida, a floresta,
rituais. Tragam-me as Aldeias de Xisto de Portugal, seus vales
e muitos rios do mundo inteiro para que eu possa tomar banho
neles, tragam-me uma paisagem do Alasca, ou mesmo
da Sibéria, tragam-me o céu do Atacama, um pedaço, ao menos,
da Cordilheira dos Andes, tragam-me uma estrada de terra ao pé
do Everest, o pico do Everest e a vastidão que se tem
do pico do Everest. Tragam-me a Grécia que não vi
senão nos poemas que vagarosamente li
e sobre os quais tanto escrevi. Em tudo que me trouxerem,
tragam-me o meu amor, porque sem ele nada adiantará.
Tragam-me — não deixem de trazer no bolso — um rinoceronte
da África de presente, aliás, tragam-me logo uma manada inteira
de rinocerontes, tragam-me hipopótamos e os elefantes
tailandeses que pressentiram os tsunamis, salvando algumas vidas.
Tragam-me, por favor, se puderem, — temos pressa —, muitos
elefantes da Tailândia para cá: a maioria de nós não anteviu
o horror anunciado que para nós viria nem se responsabiliza
agora pelo horror que vivemos. Tragam-me, por favor,
se não forem fazer falta nesses tempos por lá, ao menos,
um elefante da Tailândia para cada pessoa daqui, para viverem
o mais rápido possível entre nós, pressentindo os perigos
impostos a este país e levando seus habitantes
a cumes mais altos.
…
O tempo que for
Há de vir um dia em que voltaremos a tagarelar
nas mesas dos bares e, nos intervalos das conversas
exaltadas, a silenciar conjuntamente, depois de
os perdigotos jorrarem pelas bocas até alcançarem
os copos e os rostos alheios planejando conjuntamente
nossas fugas possíveis enquanto sonhamos outras,
impossíveis. Se esse dia, por acaso, não vier,
talvez pudéssemos, quem sabe, fugir sozinhos
de nossas vidas tão pequenas para recomeçar
uma outra vida tão pequena quanto a anterior
em algum lugar que nos dê na telha que a ele
possamos, com alguma sorte, chegar. Quem sabe
ir para Sommar, viver sem relógios ou horários
com mais trezentas ou trezentos e cinquenta
pessoas o dia a dia sem noite e a noite após noite
sem dia, trabalhando no que calhar. Quem sabe
viver, com mais quinhentas ou mil pessoas, o frio
de Oymyakon, tendo a lágrima congelada
a impedir nosso choro mais contínuo, afogando
as lágrimas (em gelo), repetidamente, num copo
de vodka caseira esperando o tempo passar.
Quem sabe, então, por fim, conseguimos não sair
mais do lugar e, de onde estamos, aprendemos
a lidar com as angústias e as árduas transformações
causadas pelos efeitos daqueles que, mais rápida
ou lentamente, permanecem — o tempo que for —
em nossas vidas, apenas para, em algum momento,
passar.