Poemas de Abû Nuwâs

Leia os poemas traduzidos "La Garçonne", "O pequeno copta", "Ele me matará?", "O coração inumerável" e "Para o amor de um cristão"
21/10/2015

Tradução e seleção: Marcella Lopes Guimarães

La Garçonne

Estou tomado de amor por uma bela jovem,
pelos cachos em forma de escorpião que emolduram seu rosto.
Seu talhe, direito e elegante, como uma coluna,
Cai bem em suas túnicas de botões.
Tão bem como moça serve como rapaz.
Pois é assim que minha amante é minha garçonne
e que minha vida está entregue em suas mãos.

La garçonne

Je suis frappé d’amour pour la belle garçonne,
pour ses accroche-coeurs en forme de scorpion.
Sa taille, droite et mince comme une colonne,
est bien prise dans ses tuniques à boutons.
Aussi bien que de fille elle sert de garçon.
Car c’est ainsi que ma maîtresse est ma garçonne
Et que ma vie est dans ses mains à l’abandon.

…..

O pequeno copta

Seu corpo é muito bem feito, suas linhas perfeitas
e do cavalo de raça ele tem os esbeltos flancos.
Dos coptas egípcios seu pai é um dos grandes,
que todo nabateu, com orgulho, rejeita.
Ele me serviu água clara e pura do Nilo,
cortada com vinho das vinícolas de Assiut,
conhecido pela sua fragrância, cor e gosto
e que, na garrafa, brilha como óleo.
Quanto ao jovem, eu o tomei sozinho
em um recanto,
para meu prazer, e eu lhe cantava poemas…

Le petit Copte

Son corps est très bien fait, ses lignes sont parfaites
et du cheval de race il a les sveltes flancs.
Des Coptes égyptiens son père est un des grands,
qui tout Nabatéen, avec orgueil, rejette.
Il me servit de l’eau claire et pure du Nil,
coupée avec du vin des vignobles d’Asyoût,
connu pour son odeur, sa couleur et son goût
et qui, dans la bouteille, luit comme de l’huile.
Quant au garçon, je l’ai pris tout seul
dans un coin,
pour mon plaisir, et je lui chantai des poèmes…

…..

Ele me matará?

Suas lágrimas escorrem sobre as suas bochechas,
pois eu o beijei repentinamente.
Mas quando eu lhe estendi uma taça, já ébrio,
ele desfez o seu cinto fazendo charme.
Maldição para mim, quando ele sair do sono
da embriaguez! Matar-me-á no seu despertar,
para me punir com os olhos pela sua desventura?
Será que incomodei o nó de seu cinto[1]?

Me tuera-t-il?

Ses larmes coulent sur les roses de ses joues,
parce que je l’ai embrassé à l’improviste.
Mais, quand je lui tendis un verre, déjà ivre,
il défit sa ceinture en faisant une moue.
Malheur à moi, quand il sortira du sommeil
de l’ivresse ! Me tuera-t-il à son réveil,
pour, des yeux, me punir de sa mésaventure?
N’ai-je pas dérangé le noeud de sa ceinture?

…..

O coração inumerável

Janân tomou meu coração, do qual nada resta:
os dois terços do meu coração e os dois terços do resto
e os dois terços do último resto.
Ao serviçal lesto,
um terço do terço. Seis partes para os amantes enfim.

Le coeur innombrable

Janân a pris mon coeur, dont il ne reste rien :
les deux tiers de mon coeur et les deux tiers du reste
et les deux tiers du dernier reste.
Au serveur leste,
le tiers du tiers. Six parts pour les amants enfin.

…..

Para o amor de um cristão

De manhã cedo, um filhote de cervo gracioso me serve de beber.
Sua voz é doce, própria para satisfazer todos os votos.
Seus dois cachos se eriçam sobre as têmporas.
Todas as seduções me espreitam em seus olhos.
É um persa cristão, modelado na sua túnica,
que deixa a descoberto seu pescoço pleno de frescor.
Ele é tão elegante, de uma beleza única,
que qualquer um trocaria de fé — se não de criador —
pelos seus belos olhos. Se eu não temesse,
Senhor,
ser perseguido por um clero tirânico,
eu me converteria, em todo bem e honra.
Mas eu sei bem que é só um Islã verídico…

Pour l’amour d’un chrétien

De bon matin, un faon gracieux me sert à boire.
Sa voix est douce, propre à combler tous les voeux.
Ses deux accroche-coeurs sur ses tempes se cabrent.
Toutes les séductions me guettent dans ses yeux.
C’est un Persan chrétien, moulé dans sa tunique,
qui laisse à découvert son cou pein de fraîcheur.
Il est si élégant, d’une beauté unique,
qu’on changerai de foi — sinon de Créateur —
pour ses beaux yeux. Si je ne craignais pas,
Seigneur,
d’être persécuté par un clerc tyrannique,
je me convertirais, en tout bien tout honneur.
Mais je sais bien qu’il n’est qu’un Islâm véridique…

NOTA
Poemas traduzidos do livro Le vin, le vent, la vie. Poèmes traduits de l’arabe et présentés par Vincent-Mansour Monteil. Arles: Actes Sud, 2009. As traduções para o português são de Marcella Lopes Guimarães, revisadas gentilmente por Lucien Frisonroche, a quem a tradutora agradece.

[1] O verso em francês é: N’ai-je pas dérangé le noeud de sa ceinture? Em francês, o substantivo noeud também pode se remeter ao órgão sexual masculino, em linguagem familiar e informal. Como não temos acesso ao texto árabe não é possível confirmar a hipótese de uma ambiguidade nesse verso.

Abû Nuwâs (757-815)
Nasceu na fronteira sudoeste do Irã, perto do Iraque atual, 150 anos depois da morte do Profeta do Islã, Maomé. Nasceu depois da morte dos chamados “califas bem-guiados”, que conviveram com o Profeta; da escrita do Alcorão e do deslocamento do centro de poder político de Meca para Damasco e de Damasco para Bagdá.
Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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