Poema de Silvio Barros

Leia o poema "Poema do desentendimento"
01/02/2005

Poema do desentendimento

A Antônio do Espírito Santo

“…sempre escrevi minhas obras
com todo o meu corpo e minha
vida. Ignoro o que sejam proble-
mas puramente espirituais…”
(Nietzsche)

E sobre brasas meu pé descansa
Aqui num desvão,
Onde tudo ainda
Não começou.
A meio grau do paraíso
Posiciono-me.
Alguns fantasmas
Tentam passar limosos
A minha frente.
Mergulho no mar
E me purifico.

Ao entrar na floresta pela primeira vez,
Nas bordas do Una de Moraes,
Vejo um ioruba com chapéu de vaqueiro
Pilotando uma Catterpilar amarela.
Ali começava minha odisséia
Pagã, torpe,
De desentender tudo aquilo que tentaram
Ensinar-me sobre o país .
Ali o Carlito, o Ìtalo, eu ou a academia, não éramos nada.

Pela literatura faço-me um deus do vazio
Algo bem maior que meu corpo
Meu orgulho
Meu ódio
Minhas derrocadas…
Quase como o rio Preguiça
Cortando dunas, mangues,
Arrastando o vento
A vida.
Mais nômade que nunca,
Acabo de chegar ao nada.
Se a morte for essa orgia,
Que ela me vista
Agora
No mar verde, marrom mangue.

Aqui no Maranhão
Tudo é lento
Lindo
Pobre
Enquanto outros “tran van dan’s” arrastam-se na selva da Colômbia.

Subo no caminhão de Zé Mingau.. Meu destino é o kilombo do Itamatatiua, ver Wanderley tocar seu tambor da cultura negra. Ao meu lado no caminhão , um homem magro, sósia de Wilson Grey, que veste uma canarinho 11 de camelô com o nome de Romário em verde. Ele ri para mim, pouco falamos na cansativa viagem e depois de horas sacolejando na carroceria do caminhão, descubro que o sósia de Wilson Grey , é pai de uma família índia com quatro ou cinco curumins a lhe esperar num casebre a beira do Rio Itatiua. Ele salta. Ajudo-lhe a descer os cofos de farinha. Mais uma hora de caminhão. Wanderley, príncipe ioruba, me recebe em cima de um zebu branco. Ali no Itamatatiua, comarca de Alcântara, não era África nem Brasil. E eram os dois. Outra coisa de fala portuguesa corrompida nos trópicos. E pela língua corrompida esse nosso estranho país desdobrava-se em mil nações, recantos, estados perdidos como lá, o kilombo, próximo a Bequimão, onde o conceito de Brasil era precário, só os mais novos o entendiam. Os mais velhos, em volta da mesa do Mordomo Reggio, mal entendiam o que era o Maranhão. Todos os rostos tinham uma marca forjada pela fala. Tudo aquilo era o mesmo país. O meu, o do Gullar, o do Carlito, o da Flora o do Noll o do Merquior o do Tunga, o do Escadinha, o do Wanderley descendente de escravos fugidos das perversões do Barão de São Bento.

Sob a chuva,
Seguindo as sete provas de Exu,
O dia nasce no Itamatatiua
Com a bruma da manhã
Se esgueirando entre os buritis…
E imagino Gullar ao rever um buriti
Em meio à névoa da floresta na aurora,
Depois de meses de manhãs cinzas de exílio em Moscow.

Wanderley me conta a história
Da mãe de sua mulher
Que era bruxa
E virava pássaro
E de sua carne saíam tubos
Que brotavam penas.
E ela voava…Todas as sextas à meia-noite
A Grécia se fazia ali com suas harpias…

Mais vento que nunca,
Me aproximo do mar.
No Caburé, sobre as conchas,
Persigo os passos do Itagiba, Charles de Voux
Que décadas viveu sob o sol dilacerante do Equador.
E cada vez mais longe me posiciono.
Agora, definitivamente,
As torres das refinarias
Estavam para trás.

Paramos em Paulino Neves
E lá, na beira do Rio Novo,
Tomo um refrigerante Marx sabor framboesa
Aqui no Rio Novo a revolução é doce.
Subo no Toyota
E por caminhos de areia prosseguimos
Um espinheiro me lembra Bergonzoli na Lybia.

Estamos no Maranhão
E a farinha com água,
Remédio do capitalismo
Por essas bandas contra a fome,
Drena o existir.
Apenas espectros, galvanizações do ser
E as lágrimas, tão pétalas como ouro,
Se desmancham ao vento.

Silvio Barros

Lançou o poema narrativo Poema Crime (7 letras, 1999) .

Rascunho