O sentido do trânsito
Faz escuro quando acordo,
o bairro todo ainda dorme.
Tomo os remédios tantos,
me visto e procuro um canto
para ler em paz esperando a luz
de uma manhã talvez azul.
Os primeiros carros sobem
a longa ladeira onde moro,
sobem muito rápidos, furiosos,
não perder a hora no escritório.
No começo, são bem raros,
e logo é a avalanche de carros
subindo o morro residencial,
em sentido para mim anti-horário.
Eu continuo lendo numa poltrona
qualquer, de onde possa ver a rua.
É nesta hora que descem, conversando,
as empregadas — sonhos suburbanos
são claros, e elas riem, inocentes.
Na minha rua não há ônibus,
todos com carro e também insônia.
Minha empregada chega, tem a chave
da porta da frente, abre as janelas
e o dia coletivo e ruidoso começa.
Eu continuo lendo, atento a tudo.
A família desce para o café da manhã,
estamos agora comendo apenas frutas,
ajuda e emagrecer melhora a digestão.
Minha empregada come fatias de pão
e bebe canecas de café com muito açúcar.
Saíamos para nossa caminhada, subindo
a ladeira e cansando as panturrilhas.
Os estudantes de uma escola pública
chegam com seus uniformes azuis,
Há beijos doídos em frente ao portão,
beijos que talvez tenham gosto de pão.
Na volta, freando nossos passos,
descemos rumo ao fundo do vale
em que, imprevidente, plantei a casa.
Passo a manhã lendo e escrevendo
na biblioteca isolada no quintal.
O barulho dos carros torna-se longe,
ouço pássaros cantando e sonho
com um mundo sem telefones.
Hora do almoço, aumenta o som
dos carros que agora descem soltos
a ladeira imensa em que moro,
eu aqui no meu mundo me esforço
para prestar atenção no romance
ou no poema que estou compondo.
O barulho dos carros, pais chegando,
mães que se dirigiram ao mercado
em busca da mistura rápida do almoço.
Barulho de carros, pequeno alvoroço
no dia de silêncio e letras em trânsito.
Eu então bebo minha cerveja e como
o que me é servido talvez por engano.
Depois durmo até o meio da tarde,
a mulher levará a filha à escola
e ficará pelo centro da cidade.
Mas antes de dormir ouço os carros:
partem para o escritório, a fábrica,
enquanto vivo de juntar palavras,
indústria velha de produzir o nada.
O barulho dos carros, ferozes,
na longa ladeira que nos isola
do resto da cidade cheia de lojas,
o barulho continua em meu sonho,
não tem fim, é um rumor de obras,
rumor de águas que se chocam,
vencendo as pedras do rio corrente.
É o barulho de minha demência.
Cansado, acordo quando já não há
carreatas de cidadãos mui dedicados
ao progresso, com o perdão do termo
Eu acordo na tarde em que o tempo
volta a ser meu, as palavras fremem
iguais a cigarras no verão breve.
Volto à faina obscura de poeta,
e leio algumas páginas de estética.
Não há carros na rua, não há vozes,
sou o dono desta parcela do dia,
que me leva à noite que se aproxima.
Quando voltam os carros, carregando
o cansaço do dia, estou no banho.
Faço a barba, sob o chuveiro quente,
depois de todo um ritual de higiene,
me visto, junto meus livros e delírios,
como um sanduíche de pão sírio,
vou à garagem de portas manuais
e saio com meu automóvel popular.
Ele escala o morro numa primeira,
lentamente, sem nenhum alarde.
A rua está quieta na noite do bairro.
As tevês ligadas nos mesmos canais,
os homens tiraram as gravatas indóceis,
as mulheres vestiram roupas folgadas,
vou, meu carro cortando a noite,
para minhas aulas na universidade.
Encontro putas, travestis e bêbados.
Fazemos parte do mesmo contingente,
vivemos nossa vocação em segredo.
Ou melhor dizendo: no degredo.
Amanhã, amanhã acordarei bem cedo.
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