Um domingo à tarde na ilha da grande Jatte
O quadro me veio à mente enquanto lia um ensaio do Zagajewski sobre o Herbert, que — não sabia — também havia sido pintor. A princípio, a imagem que recordava compôs um quadro todo meu, em que pessoas à sombra e ao sol contemplavam o Sena à sua frente, conversavam alegremente e brilhavam à luz da própria tela (da minha mente) em uma tarde que não parecia enfastiada de sua eterna imobilidade.
Nessa lembrança inicial, o “Domingo à tarde…” era um convite para estarmos todos à luz de um verão ameno e renovado, sentindo menos a nós próprios que a solidez magnífica do clima e da paisagem recortada pela chuva colorida dos raios do sol, que espargiam como confetes pelo ar e pela grama. Mas não apenas. O quadro me parecia o prenúncio de um paraíso terrestre no meio da civilização onde as pessoas podiam conversar por horas a fio, sem o incômodo barulho do mundo, e ser imperturbavelmente felizes.
No meu idílio, achei que Seurat tinha ilustrado o seu domingo como o dia permanente de uma utopia não escrita e que seus personagens palestravam animadamente e compunham juntos o diamante de cores da existência. O mundo estava ali como algo que se achava ao longo do passeio, mas podia ir tão longe quanto a lua. Logo, porém, subiu-me um incômodo à boca do estômago, como se estivesse a professar um evangelho apócrifo de um livro vermelho proscrito, um porto demasiado doce e pesado para a última ceia do presente. É que o meu idílio era ingênuo demais. Em uma palavra, uma tolice.
Ora, que interlocutores poderiam estar verdadeiramente acomodados e alegres no brilho eterno de um tempo interrompido? Pensei que eu mesma me esquivaria de estar à toa em uma conversa — mesmo elegantemente prazenteira —, que a minha lombar doeria e minha alma acenaria de longe, ansiando retornar a algum russo deixado à mesinha de cabeceira ou buscar meios de espiritualmente salvar-se de algo tão mundano. E meus companheiros? Quantos deles descalçariam as botas da consciência e deixariam formigas mordiscar-lhes os pezinhos e os pães e não reclamariam do excessivo calor dos microclimas ribeirinhos?
O meu sonho tombou ao chão como dominós em sequência, pondo abaixo, uma a uma, as minhas ilusões. Então fui consultar o quadro verdadeiro. Havia ali, sim, o brilho suavemente incandescente das cores, que pareciam salpicar pigmentos sortidos de sol nas minhas retinas; havia algo de suave nas pessoas estiradas à grama ou a passeio, algo de certa contemplação distraída ou, melhor dizendo — de certo ensimesmamento. Sim, ponderei, as pessoas ali retratadas eram, em realidade, burgueses mal à vontade em seus ternos e vestidos comportados; e as linhas não vistas dos seus rostos pareciam apagadas pela ancestralidade do tédio que estampavam.
Percorri meus olhos sobre os planos da tela. No rio, alguns barquinhos à vela e um navio; do outro lado da margem, algumas fábricas mal divisadas; ao fundo e ao meio, árvores de copas verdes frondosas; e, em toda a extensão da margem de cá, pessoas não em trajes esperados de verão. Continuei. Foi então que vi, no canto inferior direito, um pequeno macaco que figurava ao lado de um cãozinho marrom e de uma senhora, de cujas mãos pendiam as coleiras dos seus animaizinhos domésticos.
Ora, ora, foi com esse pequeno primata que compreendi. A imagem que a princípio havia imaginado tinha nada que ver com a retratada. Seurat certamente zombava de nós — daqueles que levam seu ennui a passeio e não conseguem abanar a gota gorda de spleen da máscara. Daqueles que olham sem interesse as coisas e os seres e apenas os pretendem conhecer tomando-os para si, ao invés de tentar compreendê-los em seu estrato mais incapturável. O enfado burguês estava ali, naquele macaquinho enclausurado a céu aberto.
Mas não só. Dei-me conta de que também o modo como Seurat pintava dizia-nos do engano em que havíamos convertido a realidade — em nosso próprio autoengano. Seurat não misturava as cores na paleta. Dispunha-as em pontos sobre a tela, dando à visão um efeito da mente, que, ao final, via uma mistura não efetivamente realizada. Agora essa técnica tinha se convertido no símbolo de uma catástrofe pessoal, de uma derrocada das aparências nas aparências produzidas por um espírito náufrago que não hesitava implodir todas as pontes para o mundo. Pois eis que, afinal, tudo, meu idílio e sua derrocada, não tinha sucedido senão por trás dos meus olhos — dos olhos da minha mente.
Compreendi, por fim, que, abandonando-me aos parcos recursos da minha imaginação estéril, tinha sido concubina de um delírio só meu e visto apenas as alegorias de um mundo que estava à minha frente e por todos os lados e não se esquivava de transbordar de sua taça desde que eu abrisse os olhos para o ver e caminhasse ao seu encontro. Um mundo que era, ele mesmo, um convite a experimentá-lo em sua inteira, com sua sorte de perdas e ganhos reais, suas mãos, seus corpos e copos velhos e novos, seus cães; e não, nas lascas de uma consciência refratária às coisas e destinos como eles são lá fora — uma consciência perdida despudoradamente nas dobras dos próprios remendos, exaurida e exausta inutilmente.
Ao final, o que eu tinha visto e pensado e mesmo almejado como a mais alta condição deixou-me de mãos pensas e vazias, sem que me restasse, ao menos, o choro de amantes em um quarto sujo de hotel. Aqui-fora, no entanto, o sol de todas as coisas e todos os destinos, indiferente às minhas inúteis constatações, brilhava perpendicularmente sobre o meu rosto fatigado, como se este fosse uma máscara demasiadamente tardia para o momento. E eu mesma — apenas um ponto girando em torno do próprio centro.