Poema de Herberto Helder

Leia o poema "O corpo o luxo a obra"
Herberto Helder: avesso às homenagens oficiais e à vida social literária
01/01/2005

O corpo o luxo a obra
(excertos)

Em certas estações obsessivas,
insondáveis
pela doçura e a desordem, eu vi
sobre
o barulho dos buracos terrestres
as caras
engolfadas fulgurando até ao sangue, sua teia
de ossos fechada
por membranas que respiram com luz
própria.

O luxo do espaço é um talento da árvore,
a arte do mundo húmido.
Por dentro da terra
o ouro cresce
em cadeia. Vi
os flancos suados das casas
contorcendo-se
no fundo
da luz,
onde o dia faz uma ressaca onde
gira a noite com seu tronco de planetas.

Eram
rápidas,
fortes
espaçosas
as noites do poder. O alimento vinha
com o apuro do mel. O dom
desenvolvia em mim esses mesmos rostos
abertos a meio, com a lua
e o sol dentro e fora.
Lanho a lanho
cerrara-se a carne em seu tecido
redondo.

(…)

Também as mulheres se alumiam
pela abundância, pela
boca até ao fundo, o pêlo que salta,
omoplatas
mãos redondas, os borbotões
da seda
escoada.
Estas
têm caras ascensionais, magnéticas. Inspira-as
o movimento dos quartos, a matriz
secreta
do ouro afundada entre
a vulva e o coração,
a órbita
das laranjas em torno
da estaca
viva.

A estrela voltaica queimando
a minha obra
morosa afina sombriamente cada cara
soldada
ponto a ponto,
sobre as válvulas, sobre
a luz que se abre e se fecha
na carne
lunar, implacável.

(…)

Vi
dorsos torcerem-se à volta da sua dor.
No meio,
o sorvedouro fazia um laço
de carne. Rodava em torno das válvulas negras
a estrela atômica.

(…)

E é cruel surpreender
a inocência
frenética, a taciturna doçura
com que devora:
às vezes
a força dos rostos que tem contra Deus.
Assim:
o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra.

22-23.XI.77

Herberto Helder
Rascunho