Poema de Floriano Martins

Leia o poema "Livro de Ângela"
Colagem de Floriano Martins
01/12/2003

Livro de Ângela

1.
Livro caído sobre o espelho,
o bastante para que Ângela se pusesse a reunir as imagens todas que a memória lhe permitia.
As páginas não eram propriamente um abismo.
Mais do que fantasmas saltavam da embocadura de seus cantos,
anatomia de centelhas,
versos refletindo o que há minutos nem se poderia imaginar.
Porém um livro caído sobre o espelho
pode não ser de todo nem livro nem espelho.
A grande utilidade da memória é não interferir em cascalhos e avarias do lembrado,
deixá-los reunir as pistas do que se presume essencial.
Ao ir de uma página a outra do espelho, Ângela anotava as guias,
recantos,
parágrafos entrecortados,
corpos empilhados,
ilustrações da agonia.
Esmerava-se em seus apontamentos.
Há um momento em que a vítima se mescla à natureza do crime.
A reação pode vir a ser o pior de todos os males:
aguardar o morto chegar para dar entrada no processo,
mesmo com o livro caído sobre o espelho.

2.
As lágrimas de Ângela sugeriam que não era tão longa a distância entre o ocorrido e o motivo.
Apenas uma morte lhe persegue.
Como encobrir a queda de um livro sobre o espelho?
O que lhe há de revelar é toda a existência além da quarentena:
desastres discrepâncias capítulos simplificando dores intensas…
O espelho nos oferece uma metáfora de exageros.
Não vemos tudo aquilo.
O que se reflete está além do visível:
abismo impresso nas dobras da memória.
Ângela folheando-se em busca de um elo entre espelho e livro,
rabiscos transfigurados da ansiedade.
Rascunha metamorfoses a pobre Ângela:
o que há de ser o verso o bálsamo a alegoria essa animação de anseios a idéia que nos foi implantada de uma salvação mesclada ao desmaio desajuste falseamento a arte decaindo em sua expectativa humana anotar padrões de comportamento mas sem que se possa remediá-los anotar o quanto estamos nos perdendo em engodos ah mas essa tem sido toda a nossa existência um povo dedicado a anotações
Por quanto tempo?

3.
Ângela reunida em fragmentos de suas dores.
Realidades pendendo de molduras corroídas,
primeiros recortes de memória,
collages enigmáticos com anjos mordidos por Cérbero,
precária obstinação onde tudo se crê retornando ao que jamais fora possível:
reflexos infinitamente gastos,
tesouras cegas,
anotações à margem sem propósito algum.

Esse compêndio de falhas plantadas com astúcia na trilha deixada por uma estirpe de sombras alucinadas,
flagelos do desejo,
inventário de renúncias,
arca de esvoaçantes cicatrizes,
esse favo de almas que sugere o lance de escadas no olhar de Ângela,
o que nos dirá?

Cidades que percorremos em busca do inferno,
imagens sangrando em parágrafos ilustrados por uma anatomia assustadora,
tantos versos saboreados pelo carvão,
o que essa escória permissiva da agonia nos dirá?

4.
Ao caminhar pelas ruas de Ângela o busto de uma celebridade local mal disfarçava a indignação: estamos diante das ruínas mais jovens da história…
Quantos livros não são encobertos justamente pela leitura?
Nossa vida está a repetir-se de maneira impensada,
alguns pronomes foram engolidos ou descriminados.
Quando indagamos para onde vai o pensamento depois que o pensamos sequer percebemos que já o perdemos enquanto o pensamos.
Colecionar híbridos como se fossem anomalias,
como quem serve por iguaria rara salada de mestiços e travestis e a ressurreição como prato do dia.
O jovem discípulo de qualquer onda ao ler Ovídio sente um choque e indaga ao mestre de turno: a transfiguração deve ser mesmo lavrada em cartório?
Já não sabemos a que distância estamos de nós mesmos.
Esse pseudomito da desrazão foi convertido por intelectuais e artistas no oportuno charme de uma falta do que dizer.
O livro como o pensara Vigo
— lugar onde se realiza a poética do universo —,
foi convertido em um bestiário de lesmas mancas,
cardápio de excentricidades onde são servidas pupilas de ostras em fatias e lábios gratinados de poetas surrealistas.
O passo que demos além da modernidade não pode ser um apêndice dela mesma.
Todos nos tornamos colecionadores vulgares de uma precária visão da utopia.

5.
Ângela me disse um dia:
Se não andasse por aqui toda essa sorte de malucos eu não me sentiria a metáfora concêntrica que imagino ser.
Um deles escreveu na abertura da própria exposição: tenho dedicado a vida inteira a um cuidado lapidar de jamais ser entendido.
Indexar verbetes aos motivos da morte não a evita em circunstância alguma.
Estamos sendo atropelados por uma angústia sofismável do conhecimento,
tapeados pela parvoíce
dos tolos providenciais que estão tapando o sol com uma peneira.

6.
Escrever assim em quebradiço
dando a falsa idéia de ser nada
Pender para um ponto ou outro
mudando de forma ou de olhar
Pingando uma imagem ou duas
tornando o tolo em santa realeza
Glossário de idéias mal defendidas
Crendo que dure a geometria…
Nem todo o livro de Ângela
recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.
Há algo que lhe escapa
como se pensássemos na evolução de um mesmo dilema:
somente a impostura garante o sucesso?
Estamos condenados à taxonomia?
Pensemos um pouco que seja:
toda a arte não passa de intencional catalogação de dilemas?
Não abrimos um livro ou ouvimos uma canção ou deitamos o olhar sobre uma tela senão como vítimas de uma torpe estatística?
E com que propósito defendemos o trâmite das profissões, o amor supostamente entranhado, a regalia dos filhos bem encaminhados?
Em que espécie de farsa nos empenhamos tanto?

7.
Uns pequenos corpos amontoados,
ossadas em desalinho,
retalhos de sombras chamuscadas,
pontas de espectros evocados,
genealogia de fantasmas…
Ângela recolhendo diagramas mitologias amuletos com marcas de dentadas,
trapos de espelhos,
lápides arranhadas,
mundo despedaçado e recheado de angústia,
anima intoxicada…
Que espécie de veneno saboreamos embebido em sofismas?
Sentei-me a seu lado a cabeça recostada em páginas raramente visitadas:
corpo descrevendo o abismo,
broto de quimeras,
mudas de um desejo que se refaz.
Ângela me oferta a caligrafia de suas vertigens,
encrespa-me enquanto perdura,
é apenas o instante,
e quando lhe abrimos as vísceras não há semântica que nos leve além do instante,
transfigurado ressurrecto melancólico derruído,
porém aquecido pela mesma complexidade:
a dor do instante.

Floriano Martins
Rascunho