é necessário estudar o compasso
a cadência dos escombros
escutar as camadas geológicas do escuro
as variações da cor preta que se formulam
desmoronando as barreiras da luminosidade
é necessário manusear as paredes descascadas
a mobília tomada pela plantação
as raízes enviesadas em bibliotecas centenárias
sentir o transe dos dejetos
dos detritos cobertos de musgo
exercitar as trevas que amplificam o olfato
o organismo pensante
é necessário ser engendrado por uma obscuridade aprendida
laboriosa
inominável
nos meandros do isso
do esse
do aquilo
analisar as lâminas de luz que penetram as fissuras
e formam vultos no espaço
as lâminas que dão costura às ruínas sonoras
rasgadas pelo fulgor
que regem partituras oblíquas sobre o piso de madeira
sobre os ruídos que se excedem e permanecem uníssonos
sobre os estalos abruptos que parecem fagulhas
saindo de um ar incendiário
é necessário capturar o espelho acolhendo um sombreado
que se desmancha na volúpia do reflexo
capturar a gravidade sobre o teto
a pungência da estrela que aquece e leva calor à estrutura
a rede elétrica e os canos dentro da parede
que põem em funcionamento a arquitetura oculta
capturar o som arejado que tudo possui
ao entrar em contato com as frequências luminosas
há a ação de manejar a musicalidade presente
no que é atravessado pelo brilho
a ação de ensaiar uma forma quando tudo é inóspito
rude
arredio
quando tudo se comporta de lida fugidia
de contorno gelatinoso
quando tudo que o grande corpo de escombros absorve
vai se desfazendo
restando apenas margens puídas
porosas
de energia obtusa
é necessário
porém
antes de tudo
conceber o diáfano se infiltrando nos órgãos vitais
desenvolvendo uma membrana andrógina
íntima
indomável
diante da persistência de penetrar os níveis do invisível
de instaurar a profundidade da transparência
diante da persistência de uma inquietação vaga
mortiça
de uma busca pelo desembaraço do tormento
pela carcaça do fluxo
podemos assim fabricar um fantasma
a partir de uma tempestade de lava em um planeta sem nome
a partir das faíscas desencadeadas no núcleo de uma gigante vermelha
prestes a explodir
a partir dos indícios que se preservaram de uma espécie extinta
podemos assim inventar um espírito
sob a presença da vaga fumaça de um cachimbo
usado em um ritual sagrado
podemos assim compor um espectro
a partir do resíduo
o que torna viável fundar um esqueleto
no contraponto do empuxo cravado na vertigem
um esqueleto de pequenas torções
estouros
rombos luminosos
o que torna viável amputar o sentido
para defender o organismo restante
exercendo sempre um modo de devassidão
sem metodologia
cunhado apenas no tormento sem fim
é possível que haja
no decorrer do processo
o abrigo da regência de um estado manual
no qual a língua
a garganta
e os pulmões
passem a funcionar de maneira primitiva
onde a escrita passe a fluir pelos ossos
pela carne
pelo sangue da curvatura da mão esquerda
sustentando então a dignidade do inefável
a convulsão dos vernáculos
a dilatação devastadora do silêncio originário
sustentando a prática da exaustão
do esgotamento
da embriaguez do limite
do rumor supremo de lucidez que toca o nascimento da loucura
tornando essa a grande razão
é preciso ainda assumir o cheiro dos rizomas presos
nas brechas de concreto
o cheiro da rede complexa de fungos
do circuito labiríntico de formigas
das tubulações de gás
dos túneis abandonados
que permanecem como cavidades por onde flui a luz subterrânea
divergida pela refração
é preciso ainda observar a autonomia do delírio
abrindo o olho do vácuo
indigesto
agressivo
que secreta símbolos
é preciso ainda lavrar até encontrar a matriz inócua
trabalhando calmamente o húmus
ainda é preciso
sobretudo
encarar a artificialidade do divino
entalhar os depósitos que continuam se emoldurando
na região plúmbea e densa da mitologia
por isso
estou me familiarizando com o ecossistema turvo
incorporando a temperatura
absorvendo o gosto da amálgama que se avoluma por toda parte
estou me habituando com a lentidão dos movimentos
com a atmosfera hostil
com o imenso peso do intangível
aprimoro o ofício a longo prazo