Poema de Affonso Romano de Sant’Anna

Leia o poema "Elegia 2004"
Affonso Romano de Sant’Anna, autor de “Vestígios”
01/04/2005

Elegia 2004 

Então foi para isto
que Espartacus comandou milhares de escravos
e Empédocles atirou-se no vulcão?

De  que adiantaram o aureolado perfil
e o régio pescoço de Giovanna Tornabuoni
estampado por Guirlandaio?
De que serviu Boccacio reunir dez jovens narradores
resistindo à peste
e os contos da princesa distraindo o rei da morte?
De que  valeram os combates de Heitor e Aquiles
se o bufão não iluminou a mente do Rei Lear?

Então foi para isto
que Mozart  fez soar harpas clarinetas e oboés
e Bach compôs a “Paixão  segundo  São Mateus”
como  se não bastasse
a “Paixão Segundo São João”?

Em vão o girassol seguia inexorável a adoração da luz
e os pássaros  migraram  sobre o mar.

O que ergueu a cidade no deserto
não abrandou a ira do jaguar.

Quando?
Onde?
Como foi
que ficamos como o “Adão  e Eva” de Masaccio
com a alma oca
a vontade pouca e a perdida inocência
em nossa boca?

Embevecido
olho uma criança
entregue ao destino que a ultrapassa.

Considero a lealdade deste cão
os elementos da natureza tão entregues a si mesmos
que desconhecem — por desprezível —
nossa condição.

Achávamos que  íamos a alguma parte
mas sequer rodávamos em círculos
dançávamos à beira de um abismo
indiferente e frio.

Saio à varanda nesta noite
e contemplo as vagas estrelas da Ursa Maior.
Não  tenho voz de queixa pessoal
não sou um homem destroçado na praia
mas sucede que me canso  de ser homem.
Quem, na hierarquia dos anjos, se eu gritasse
ainda me socorreria?

Os objetos desta casa me olham desamparados.
Tínhamos um projeto. Nas manhãs
um raio de sol nos coordenava.
Agora  olham-me ensimesmados
impossível juntar as partes
disjecta membra — na natureza
os seres já não se reconhecem.
A veste original já não nos serve
e a futura se nos despe.

Arde na lareira desta casa na montanha
o último fogo da noite.

Meu cão que não lê jornais
vem enrodilhar-se aos meus pés
como se ainda pudesse dar-lhe proteção e afeto.

Foram precisos, poesia, sessenta e tantos anos
para constatar que tua  áspera carícia
é tudo o que me resta.

A ti delego o oculto sonho que me sonha
e de esperança
— uma réstia.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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