Poema de Adriano Espínola

Leia o poema "sem titulo"
Adriano Espínola, autor de “Escritos ao sol”
01/10/2003

Depois da vasta camelotagem com palavras de frente altiva e verso livre e gasto, o poeta resolve concorrer a um emprego fixo, entregando à nova escola literária do bairro breve curriculum vitae, um memorial e o pedido de emprego:

   1

  Do princípio
ao         fim,

preci    pício
de        mim.

    2

(Tudo o que fiz
aqui disfarço:

    foi por um triz
ou por acaso).

  3

   Quero o emprego
para o meu ego

     impertinente,
que mexe e sente

    o que carrego
ou mesmo nego

 e invento em mim:
metade sim,

       metade não,
na contramão.

Por isso, passo
fora do traço.

Combato e sigo
meu inimigo.

(De tão antigo,
levo comigo).

Salto e tropeço,
trapaço e peço,

mudo o cenário,
que é um e vário,

da língua-rio,
onde desfio

palavras loucas,
todas barrocas,

entre tramóias,
perdidas bóias

do meu sonhar,
indo pro mar.

Com elas quero,
pra ser sincero,

só trabalhar
à beira-amar;

fazer da aurora
um sempre agora

de carne e sonho,
tal qual suponho

tu romperias,
todos os dias,

ó minha amada,
de madrugada.

     Chega de lero,
pois eu só quero

o que não tenho:
aí me empenho,

aí emprego
todo o meu ego.

Dou como exemplo:
caçar o tempo.

Vou ao futuro
vê-lo mais puro;

volto ao passado,
vejo-o enrolado

com o presente,
mordendo a gente,

esquiva cobra
que se desdobra

em formas mil:
trama sutil,

corpo coral,
liso animal,

que logo enlaça
o dia que passa,

ferindo pleno
com seu veneno

as coisas vivas,
do sol cativas

(ou que às escuras
pulsam mais puras).

Espero o bicho.
Teimo e capricho

a voz do verso,
uno e diverso,

para pegá-lo
pelo gargalo,

ao vê-lo manso,
enquanto lanço

o canto certo,
assim por perto,

ou a melodia
que ouviu um dia

em longes eras,
entre outras feras.

  Preparo o laço
que eu mesmo faço.

Armo a tocaia
para que caia

ali, onde, onde
rubro se esconde:

(ó tempo meu,
flauta de Orfeu,

tocando triste
tudo o que existe!)

dentro de mim,
do início ao fim.

* O poema aqui publicado pertence ao livro O suor dos sentidos, a ser lançado em breve.

Adriano Espinola

Nasceu em Fortaleza (CE), em 1952. Publicou, entre outros, Em trânsito: táxi/ metrô (1996), Beira-sol (1998), Praia provisória (2006) e Escritos ao sol (2015). É professor universitário aposentado e integrante da Academia Carioca de Letras. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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