Ele tinha raiva e medo. Raiva por ter ficado calado enquanto ela disparava uma metralhadora verborrágica contra seu ego. Ela sabia quais palavras poderiam feri-lo com maior precisão, e não vacilou em usá-las. Ele não conseguia entender porque um imenso nó se armava em sua garganta, e travava qualquer possibilidade de defesa ou argumentação. Mesmo com revigorantes respostas prontas em sua cabeça, tudo aquilo esbarrava em sua garganta, e ali ficavam, como entulhos presos numa enxurrada. O silêncio era uma constante em todas as discussões com sua namorada. Este silêncio punha raiva no espírito dele.
Tinha medo dos pensamentos que sempre retornavam nestes momentos críticos. A mesma possibilidade que aflorava em qualquer briga. Às vezes com maior intensidade, como agora. Ela vai deixá-lo e, no final das contas, a culpa vai ser toda dele. E se não for, ele a assumirá, pois isto trará uma esperança tola em seu coração. Ao assumir a culpa, somente ele teria o poder de corrigir o próprio erro — e assim ela voltaria. Ele jamais correria o risco de conceder tal poder à namorada.
Sentindo raiva e medo, ele saiu de casa às pressas, batendo a porta com força. Mora num belo apartamento, cuja imensa sacada tem vista para um mar verde e ondulado. Uma vasta floresta, para os padrões de uma metrópole, densa e com mil variações de verdes e ocres que se tornavam azulados à medida que este tapete se aproximava do horizonte. Os dois tinham passado todos os fins de tarde, da primeira semana após o encontro, olhando este infinito, sentados, em silêncio, mãos e corações entrelaçados.
Ele nunca entrara naquele verde. Apesar de ter tido vários momentos em que um desejo enorme o empurrava para além das cercas mal conservadas do bosque, a preguiça sempre triunfava em seu corpo. Várias vezes, chegou perto, mas sempre retornava para casa, com o reconfortante pensamento de que no próximo fim de semana iniciaria uma exploração por aquele território desconhecido. Então, sentava-se à frente da TV com mil canais e a floresta saía de seus pensamentos em alguns poucos segundos.
Desta vez, entretanto, a imagem dos delgados troncos que subiam e explodiam em folhas lá no alto, era irresistível demais para ele. E naquele instante, o significado daquilo adquiria proporções definitivas. Então, ele inicia sua exploração no fim do dia, quando o sol ainda projetava seus últimos raios dourados sobre a cidade. Dentro do bosque, esta mesma luz fica ainda mais fantástica, sendo estilhaçada pela densa folhagem no topo das árvores. Apenas alguns feixes, fracos e atenuados, conseguem alcançar os troncos, o solo recoberto de folhas e galhos mortos, tapetes verdes de musgos.
Ele continua com medo, mas não teme a escuridão da floresta. Continua em frente, em compasso firme, fazendo ranger as folhas secas e estourando gravetos com seu tênis desbotado. As palavras dela voltam a ecoar mais forte dentro da sua alma. Num primeiro momento, quando o fato ainda ocorria, ele não conseguia filtrar ou analisar nenhuma palavra das acusações desferidas pela outra boca. Com o passar do tempo, geralmente ele revivia tudo, e era muito mais doloroso.
Não entendia o porquê, mas sabia que era pior. Parecia que sua mente lhe pregava uma peça e amplificava tudo. Como se a lembrança fosse uma espécie de número exponencial aplicado sobre a dor ou a felicidade. Era muito bom ou muito ruim lembrar dos fatos marcantes. Muito melhor ou pior que a realidade. Enquanto a escuridão o abraçava, a guerra interna explodia de novo e tornava-se nítida à sua frente. Então, aquela sentença repetia-se, intermitente e destruidora. Vou te deixar e voltar a viver, como antes.
O que isso significava? Era uma ameaça real, ou apenas palavras nascidas de um turbilhão de hormônios descontrolados? Ele havia matado a amada, por isso ela voltaria a viver depois da separação? E se, naquele instante, enquanto ele está num lugar desconhecido e sem volta, ela estivesse arrumando as malas? Para aonde ela iria? Isto tudo não seria um pretexto para ficar definitivamente com uma outra pessoa, com quem ela já se relaciona há uma longa data? Quem poderia ser este desconhecido? E se for isso mesmo, como ele poderia lutar contra tal ameaça fantasma?
O medo inicia a transmutação final. Torna-se desespero. Ele sente que está a ponto de ver sua namorada partir, e não há nada que ele possa fazer para evitar tal fato. Mesmo em uma noite fria como esta, o suor brota de sua pele em mil pontos microscópicos e, gota a gota, juntam-se e formam manchas circulares na camisa branca. O nó na garganta aos poucos vai se desfazendo, sobem para os olhos e se diluem em lágrimas que descem o rosto crispado.
Ele vive agora o limiar entre a felicidade e o sofrimento imensurável que vai tomar conta a partir daquele dia. Sentia-se perdido, e não sabia como voltar. Era impossível voltar. Estava perdido. Percebe que a única chance de vê-la, pela última vez, seria voltar imediatamente para o ponto inicial de sua exploração. Mas não tinha a menor idéia de como poderia fazer isso. À sua volta, tudo era igual. Algumas fileiras de troncos pelados e esguios sobre um fundo negro e irreconhecível. Ele não sabia nem se havia andado em linha reta este tempo todo, ou se andou fazendo curvas e desvios.
Fez então um giro de cento e oitenta graus e iniciou a caminhada no suposto mesmo caminho, sempre em linha reta. O tempo passou, os lugares desconhecidos também, e após longa caminhada, deu-se conta de estar num lugar totalmente estranho a ele. Não achou a saída. Ou a entrada. Pior: não existia nenhuma referência tranqüilizadora. Como quando criança. Tinha tanto medo de ser abandonado pelos pais, no centro da cidade, que mantinha forte em sua cabeça a imagem de uma caixa d’água bege, no alto de um morro. Caso fosse necessário, sabia que deveria ir naquela direção. Este era o caminho que os pais dele sempre faziam quando o deixavam na escola. Sempre passavam pela caixa d’água. A imagem da torre bege no alto do morro era tão confortante quanto o colo da mãe, ou o ombro de sua amada.
Ele estava prostrado numa encruzilhada imaginária. Ele mesmo a desenhou, com sua mente, ali no solo úmido do bosque. Duas linhas perpendiculares entre si, como uma Rosa dos Ventos, davam-lhe quatro opções de direções a tomar. Pegou o leste como direção certa, lugar onde distante linha presencia o sol brotar todas as manhãs.
Andou. Lembrou-se do dia em que conheceu a namorada. Continuou andando. Lembrou-se do dia anterior, quando não sabia da existência dela. Estava cansado, mas seguiu em frente. Veio à mente o dia mais feliz da sua vida, e ela não estava presente, pois não a conhecia ainda. Um filme pós-moderno, Romeu e Julieta, do diretor Baz Lhurman, surgiu em sua memória. Como odiou aquele filme. Mas a última música da trilha trouxe alívio à sua angústia naquele dia, naquele cinema, solitário e triste. Foi o dia em que terminou com sua ex-namorada. Mas ao ouvir Tristão e Isolda brotando das caixas acústicas de última geração do Multiplex, algo se moveu dentro dele, e a imensa tristeza se dissolveu, e escorreu para dentro das frestas entre as poltronas aveludadas. Começou a cantarolar Tristão e Isolda.
Caminhando sempre. Sua tensão foi se dissipando, como se um líquido anestésico se espalhasse pela corrente sanguínea. Olhou para frente e viu uma imensa mancha branca horizontal, encimada por uma concha branca e negra, estática e gigante, surgindo entre as árvores. Era o limiar entre a floresta e a civilização. A cidade estava surgindo entre os troncos, penetrando com sua luz artificial o negro profundo daquela pequena floresta. Ele já estava tranqüilo. Em poucos segundos reconheceu aquela construção. O mesmo alívio voltou a inundar seu corpo, ao perceber que estava no pátio gramado do Museu Oscar Niemeyer. Todas as tardes de sábado, antes de conhecer a amada, havia passado sob o vão livre daquela estrutura magnífica. Também foi ali que a viu pela primeira vez, olhando para o infinito, para dentro do espelho d’água. Ali estava a referência que buscou este tempo todo. O olho.