Pergunte para quem o assassinou

Conto de Aline Valim
01/01/2005

“Senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio.”
(Meursault via Camus in O estrangeiro)

Numa repartição pública não é muito difícil conhecer os colegas de trabalho. Sempre há mais pessoas que o necessário para a execução das tarefas, assim uns trabalham mais, outros menos e há os que nem trabalham, e, em resumo, sempre se abre um falatório geral em que as vidas acabam sendo expostas. O fato de eu ser o faxineiro me dava livre trânsito por todas as salas. E pouco direito de falar de mim mesmo. Eu, quem recolhia a sujeira de cada um — do cuspe do gerente, fumante inveterado, aos papéis de doce sobre a mesa de Leila. Eu, quem metia a mão na sujeira alheia, quem conhecia os hábitos de cada um, eu nada falava. Leila… Leila era a única que possuía minha admiração. Pode parecer inverossímil, mas sou um homem inteligente. Aliás sempre me achei mais inteligente que o próprio diretor da repartição. Eu sabia do desastre de Camus, da loucura de Fitzgerald, do sofrimento de Gide, da tristeza de Dostoiévski, da desgraça de Lima Barreto, trilhei as ruas de São Petesburgo com cada desvalido de Gogol. Conhecia todos os grandes poetas. Sabia tudo de Rimbaud, Baudelaire. Nutria grande admiração por Lautréamont. Sempre dormi num quarto onde a vassoura, o balde, a água suja que carregava os passos dos habitantes da repartição, os panos que passava nos vidros e as dores no corpo de tanto movimento davam lugar a um colchão sujo rodeado de livros, muitos livros. Ao anoitecer meus olhos passavam pelos livros até o sono se estabelecer. Sabia um pouco de música também. O interesse pela música veio da convivência com Leila. Não que ela soubesse muito de música, porém, quando ela subia a escada, eu, que sempre fui um observador, já sabia de antemão qual a cor do sapato que ela usava. Sabia a cor, o tamanho, se era de salto alto ou baixo. Com um pouco de dificuldade passei a saber até o tipo de couro. Foi no toque de seu corpo com o chão que vi Bach, Chopin, Beethoven; foi no caminhar dela que passei a dar importância a eles. Agora todos tinham sentido para mim. Comecei a dar nome aos passos de Leila. Se o sapato era preto e o seu passo lento — Noturno Em Mi Bemol, Opus 55, Nº 5 — era um autêntico Chopin, se o passo apressado e fosse o do sapato marrom e passasse voando por mim — Tocata e Fuga — Bach. Se o sapato fosse um marrom claro e sem salto e ela chegasse lentamente, com um olhar triste — Claire de Lune — Beethoven. Tinha um sapato que era inclassificável, nunca conseguia ressoar em minha cabeça como música. Então passei a freqüentar lojas à procura de uma música; passei por muitos compositores até que conheci Robert Schumann e o caso ficou resolvido. Leila era minha sinfonia. Era uma orquestra. Todos na repartição viviam na superfície. Passava por todas as salas com muita indiferença. Muita. Na de Leila eu me absorvia. Cheirava o ar para ver se seu perfume permanecia ali. Anotava o nome dos doces para presenteá-la se um dia criar coragem. Nunca criei tal coragem. Olhava seus papéis sobre a mesa com atenção. Limpava tudo com esmero, cuidado. Observava a cadeira que abraçava seu corpo, o copo que a beijava. Um dia até acariciei a caneta que ela usa. Parece que ela nunca notou minha presença. Nunca. Não que fosse orgulhosa, mas quem daria sorrisos e conversa para um faxineiro? Quem? E eu também sempre fora muito discreto. Em dois anos de trabalho sabia muito de Leila. Pela sua voz reconhecia se estava com problemas. Mas todo mundo continuava na superfície. Todos. Passei a perceber que por traz daquele corpo elegante, Leila se vestia com uma elegância superior, havia alguma dor e muita angústia instalada. Como sempre associo as imagens, quando via seu corpo inerme na cadeira pensava em uma garça na beira de um rio ou um cavalo solitário num enorme pasto verde. Dois animais esteticamente muito belos e portadores de uma solidão silenciadora e assustadora. Leila sempre procurou dar um caráter prático, pragmático a sua vida, mas eu sabia que fazia isso para resistir, para não sofrer. Tinha uma necessidade de estratificar tudo, de coordenar tudo. Nada fugia do determinado. O inesperado a assustava, o intangível a perturbava. Eu percebia essas coisas pela forma reservada com que se expunha. Nunca falava demais. Sempre o suficiente para ser entendida. De sua vida? De sua vida amorosa, interna e de seus dias em seu apartamento, ninguém sabia. As pessoas se abriam. Uma falava com tristeza da filha que se drogava, outra da rejeição que tivera da mãe, outro da incompatibilidade com a família. Mas ela não, ela se mantinha inabalável. Certo dia entrei em sua sala e percebi que iria falar algo, apontou para minha calça. Havia um papel. Um poema. Sim. Eu havia esboçado um poema. O papel caiu. Ela juntou e sem colocar os olhos sobre ele, com suas mãos finas e longas, estendeu o papel a mim. Fiquei desconcertado. Sugeri que lesse. Ela olhou com espanto porque meu nome estava no final da folha. Escreves? (ela sempre fala em segunda pessoa). Escrevo, atenuo algumas dores; disse isso e saí. Senti que havia se estabelecido um pacto. A primeira palavra dirigida a mim nunca mais foi esquecida. Aquele “escreves” latejou por anos na minha memória. Leila tinha cabelos longos. Um dia recolhi alguns e guardei no bolso de meu jaleco. Naquele dia não almocei. Sentei sob uma árvore e fiquei acariciando os cabelos. Um lunático. Sim. Quem acreditaria? É preciso deixar claro que não sou neurótico, que não tenho fixação. Alguém pode pensar que o que sinto por Leila é uma doença. É! Porque, em nossos dias, amar alguém é um desvio. Uma doença. Não sabendo o que fazer com seus cabelos, inventei algo. Bem, ser artista hoje é outra coisa muito fácil, muito fácil. Basta juntar umas quatro latas enferrujadas, colocar a foto de uma criança no meio e eis a metáfora da corrosão humana, da corrupção humana. Não sou reacionário. Isso não. Mas é que na época de Duchamp tinha significado. Hoje, não sei. Então imbuído desta facilidade de tudo ser arte, peguei os cabelos de Leila, arrumei uma folha em branco e fiz doze linhas. Um soneto. Sim. A idéia era escrever um soneto com os cabelos servindo de linha. Dispus os cabelos — primeiro quatro. Espaço. Mais quatro. Espaço. Três. Espaço. E os últimos três. Quando todos estavam colados na folha senti que seria impossível escrever. Assim ficou. Pendurei no meu quarto ao lado de um soneto de Camões. O meu soneto era melhor. Comecei a rir. Sou um gênio! Um faxineiro gênio! Claro que quem não conheceu Leila nunca vai entender o soneto. Por isso escrevo sobre ela. Quando morrer e alguém descobrir aqueles doze versos jamais escritos terá que saber de onde vieram, para que o significado não se deteriore. Com o passar do tempo me aproximei dela e até consegui pescar uma e outra coisa. Amei Leila como nunca. Desejei. Mas sempre soube que nunca me amaria, jamais se aproximaria de mim com ternura. Sempre fui o faxineiro. Sempre estamos determinados. Se alguém pergunta — o que você é? Pronto. Faxineiro. Para outro — professor. E assim vamos perdendo o homem. Assim vamos nos perdendo dentro de uma rede que consumirá nossos dias. Queria resgatar algo em mim. Queria berrar e dizer que não sou faxineiro coisa nenhuma, que nenhum cargo está à altura de minha alma. Queria dizer que me sentia um rio limpo em meio à podridão. Mas quem daria ouvidos a um faxineiro? Está louco, certamente diriam. Me mandariam a um psiquiatra, a um psicólogo e me afastariam do convívio humano. Um doente. Precisa de ajuda. O que ocorreu? Aconteceu que Leila contribuiu para minha desgraça. Ela, com a melhor das intenções, numa conversa entre os colegas da repartição, apontou para mim e disse — “ele é um poeta”. Todos riram. Todos riram e senti no olhar dela as lágrimas que se travaram em minha garganta. Nunca mais apareci na repartição. Primeiro pedi transferência. Depois afastamento. Saí. Leila havia quebrado nosso pacto. Minha dor se acumulou. Hoje, sem a presença de Leila, fico horas deitado nas calçadas, nas catedrais. Sempre procuro o lugar que mais passos possa ter. Que mais passantes desfilem com seus sapatos musicais. Fecho os olhos e procuro na multidão os passos de Leila. Todos monocórdicos, nenhuma sinfonia, nenhuma partitura. Os passos nos concretos estão duros, rígidos. Mas sempre penso que um dia os passos de Leila chegarão correndo em minha direção; correrão tanto que se multiplicarão em várias vozes, começarão leve e se tornarão densos — sim. As Ruínas de Atenas e 9ª Sinfonia, Presto — Beethoven. Uma explosão. Ilusão. Leila nunca me procurou. Leila não se abraçaria a mim. Mas ao contrário do que podem pensar os possíveis leitores desta narrativa, Leila me trouxe à vida. Ela por si só me trouxe à vida. Como se Jesus tivesse ressuscitado Lázaro, Leila ressuscitou a mim. Penso em Leila como uma tela de Klimt em que há um beijo terno, no rosto.

Aline Valim

O conto Pergunte para quem o assassinou pertence ao livro A dança das danações (inédito).

Rascunho