Perguntar, as vezes, machuca

Meninotas e piazotes, dizem que perguntar não ofende, mas isso e uma tremenda mentira
01/06/2001

Meninotas e piazotes, dizem que perguntar não ofende, mas isso e uma
tremenda mentira. Desconfie das pessoas que dizem coisas como “perguntar
não ofende”, “quem espera sempre alcança”, “tapinha de amor não dói”, “pau que
nasce torto morre torto”, “a voz do povo e a voz de Deus”… O nome disso
e frase-feita e o nome já explica: são frases que já vem prontas,
pré-fabricadas. São falas de quem não tem muito o que dizer e não quer
pensar no assunto. Com essas frases, as pessoas se poupam de ter algo
inteligente para falar ou encerram o assunto com algo com o qual todo mundo
concorda mesmo sem saber direito o porque. Essas frases feitas quase sempre
estao erradas.
Porque certas perguntas tem que ser feitas com muita delicadeza; porque
amor e muito mais carinho que tapinha e tem muito tapinha que esmaga a gente;
porque tem muita gente que morreu sentada sem alcançar o que esperava; e
também porque tem gente ruim se dizendo a voz do povo, quando, na verdade,
só quer ser a voz de Deus. Desconfie de quem coleciona esse tipo de frase e
ainda diz esse conjunto mofado de papagaiadas e sabedoria popular.
Sabedoria popular e evitar repetir coisas – como um papagaio – e ter as próprias
idéias. E é o que o livro IDÉIAS QUE CONTAM HISTORIAS DAS IDÉIAS DO Zé (Callis, 50 págs.), com texto da Silvia Camossa e as belas ilustrações de Camila Mesquita. E um livro bonito de olhar e ler. E a historia do Zé, que deixava
a idéia de todo mundo entrar na cabeça dele, mas um dia ele se cansa e
resolve ter as próprias idéias. Lembra ate uma historia da Ruth Rocha,
chamada NICOLAU TINHA UMA IDÉIA. Um dia Nicolau chegou em um lugar onde cada pessoa só tinha uma idéia. Ai resolveu contar a sua idéia para todo mundo. Ai todos ficaram com duas idéias cada, a sua mais a de Nicolau. Ai, cada um contou a sua para o vizinho e aconteceu que, de repente, todo mundo tinha
varias idéias, mas cada um do seu jeito.
Mas a gente só aprende esse tipo de coisa, de verdade, na pratica. Por
exemplo, essa historia de que “perguntar não ofende”. Não ofende, mas as
vezes dói… Foi uma vez, quando minha mãe se arrumava para ir a reunião de pais e
mestres. A reunião de pais e mestres serve para os professores explicarem
aos pais o que vai acontecer com seus filhos durante o ano e para os pais e
mães dizerem o que esperam que aconteça e coisas assim.
Eu estudava em um colégio bem caro. Não que meus pais fossem ricos. Na
verdade, eram meio pobres. E, embora eu não tivesse tantos privilégios
quanto meus coleguinhas, nunca fui estudar sujo ou maltrapilho. Meu
uniforme estava sempre limpo e entre mim e meus colegas não se via diferença. O
colégio era meio longe e, quando chovia, meu pai fazia questão de me
carregar no cangote para eu não sujar meu único par de sapatos e meu único
uniforme que era lavado todo fim de semana.
Dessa época, a coisa que mais lembro dele são as barras da calca e os
sapatos sujos de lama com os quais, dali a pouco, ele iria trabalhar. De
minha mãe, eu lembro daquele dia, em que a vi se arrumar para ir a reunião
de pais e mestres.
Ela colocou aquele vestido florido, muito bonito e que, embora já um pouco
desbotado, combinava com seus olhos verdes e seus cabelos negros. Mas não
pude deixar de notar que, em todas as reuniões em que ela tinha ido ate
agora, usava sempre esse vestido. Enquanto ela cuidadosamente arrumava os
cabelos, perguntei-lhe por que usava sempre a mesma roupa. Ela ficou
quietinha – não lembro de outra vez que eu tenha ficado sem resposta ao lhe
fazer uma pergunta – e continuou a arrumar seus cabelos com afinco. Ao sair
do quarto tive a impressão que seus olhos estavam mais úmidos e brilhantes
do que o costume. Naquele tempo, não entendi direito.
E, só depois de alguns anos, a cena me apareceu de novo na memória. E,
então, eu entendi que certas perguntas devem ser feitas com muito carinho,
cuidado e atenção ou ate nem devem ser feitas. Porque, assim como eu só
tinha um uniforme e um par de sapatos para ir ao colégio, minha mãe só
tinha aquela roupa para sair e ir as reuniões no colégio e encontrar as outras
mães, sempre tão bem vestidas. Naquele dia, lembro, o vestido, mais do que
nunca, combinou com seus olhos marejados, embora seja sempre triste ver
alguém chorando, principalmente quando e a mãe da gente.

Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho