Pentax, Angola, 1961

Conto de Maria David
Maria David, autora de “Europa”
01/08/2006

Álvaro abre a porta para o quarto negro, onde está deitada a sua mãe, quase morta, ainda viva. Com passos pesados, o corpo lancetado, mãos secas, os tiques da máquina fotográfica ¾ o dedo indicador sempre a puxar o gatilho ¾ aproxima-se do corpo frio da mãe e beija-lhe a mão, segurando-a com o dedo em forma de revólver.

Batem à porta. A mãe-viva-morta aparece com um chá.

“Posso?”, pergunta, ainda com um sorriso. Jovem.

“Sim, sim, claro”, o filho-maior responde, aproximando-se da janela.

A mãe-viva-morta senta-se na cadeira de baloiço em frente à cama onde está deitada a mãe-morta-viva. Pousa o chá no colo. Ainda está quente ¾ o filho-maior vê o fumo elevar-se da chávena, como uma fábrica de queimar corpos.

e as cinzas? e as cinzas?

Entra o filho-menor e senta-se aos pés da cama. A mãe-viva-morta passa-lhe a mão pelo cabelo. Sorri.

“O pai, onde está?”

“Nas montanhas, querido”, responde a mãe, com uma calma indiferente.

“Quais montanhas?”

“Em todas. Sabes como são as montanhas, não sabes? ¾ o filho-menor assente, sorriso estúpido estampado na face, que irrita o filho-maior ¾ então, é lá que o pai está.”

“Mas por que não volta? As montanhas são perto.”

“Sim, são perto, mas ele ainda não pode voltar.”

“Não vai voltar, idiota! Como não consegues ver isso!”, o filho-maior revolta-se contra o filho-menor, que fica nervoso. A mãe agarra-lhe o braço e levanta o olhar da censura para o filho-maior, ordenando-lhe que se cale. A mãe-morta-viva chora.

“E tu, por que não choras?”, pergunta com violência o filho-menor à mãe.

Durante muito tempo, a mãe que hoje está deitada nesta cama soube que nada havia para chorar. E, apesar de Álvaro nunca o ter visto, o choro dela era um choro miudinho, silencioso, “como quando os cães têm os olhos húmidos”, diz o filho-menor.

“Pediste-me para não dizer mais nada”, conta Álvaro, “mas por que não compreendes a minha revolta?”

“Porque eras apenas uma criança”, diz a mãe com olhos esbugalhados em direcção ao filho-menor, “olha para ti!”

Álvaro, o filho-maior, vê-se anos antes, bermudas azuis e camiseta branca, o cabelo riscado ao lado, uma simetria de vale com rios de ouro na terra queimada, sandálias que se balançam porque as pernas ainda não chegam ao chão.

A mãe-viva-morta continuava com o mesmo sorriso vincado, fixo, sempre, consolo do filho-menor, temor de Álvaro. “Como poderia explicar-te que talvez nem houvesse montanhas, mas mato, mato ou morro, mato, mato, mato e ¾”

Batem à porta. Entra um oficial de farda, com óculos pequeninos e a bandeira portuguesa.

“Pode-se entrar?”

A mãe-viva-morta levanta-se de repente, pousando de lado o sorriso. O filho-maior mirou com chumbo o homem que agora era do seu tamanho e que, na altura, não passava de um gigante com uma bandeira e uma carta selada na mão.

“Trago aqui o comprovativo e a certidão de óbito.” O homem jogou os documentos com desprezo. “Os meus sinceros sentimentos, minha senhora”, fez a continência e retirou-se. A porta fechou-se. A mãe voltou a sentar-se, agora sem o chá, mas com a bandeira e o sobrescrito.

“O que diz, mãe?”, pergunta o filho-menor curioso, espreitando por cima do ombro, decifrando a carta na transparência em contraluz, “O que diz? O que diz?”

“Diz que foi um herói! Não te preocupes. Daqui a uns anos encontra-la-ás na cómoda junto à câmara e, como uma imagem gravada na tua memória, vais poder lê-la toda, e compreendê-la toda, e reconhecer o erro, o horror, o nojo”, diz o filho-maior, com ardor, ao filho-menor que, não ouvindo o que lhe dizia a sua própria voz anos mais tarde, continuava rindo e correndo em volta da cadeira, tentando ler a carta, “o que diz?”

“Diz que foi um herói”, diz a mãe-morta-viva de olhos fechados.

“Diz que foi um herói”, diz a mãe-viva-morta de olhos abertos.

“O pai é um herói? E vão dar-lhe uma medalha?”, pergunta o filho-menor.

Álvaro está melindrado com a sua pergunta, anos antes, quando ainda não tinha idade para as fazer. Responde-lhe com alguma angústia: “Os heróis não morrem nunca. E ele morreu, depressa de mais para poder sê-lo.”

“Não, meu filho, os heróis servem-se mortos, numa bandeja ao Estado”, diz a mãe-morta-viva com um sorriso ¾ agora com quebras nas pontas dos lábios, com rugas na testa, sem luz.

Silencioso, o filho-menor está concentrado e quieto, um instante, para depois perguntar: “O que é o Ultramar?”

Álvaro fitou a mãe, consternado.

“É… ¾ a mãe-viva-morta hesitou ¾ um conjunto de terras que nos pertencem, mas não nos pertencem.”

O filho-menor levanta as sobrancelhas: “Pertencem ou não pertencem?”

“E agora, o que respondo?”

“Responde a verdade. Responde que não pertencem”, diz Álvaro.

A mãe-viva-morta está afónica, aflita: “Se respondo que não pertencem, ele vai perguntar-me que tipo de terra é a nossa. E Angola não nos pertence, apesar de vivermos nela. Como podemos viver numa terra que não nos pertence?”

Na cama, a mãe a preto e branco neste retrato a cores fecha os olhos enquanto responde, como se visse a linha no horizonte impossível de vislumbrar (senão no recorte de uma fotografia) quando o cinzento do céu se encontra com o cinzento do mar. “A história dos homens é insana e não te cabe a ti explicá-la. Ele terá que descobri-la por si.”

O filho-menor está parado, esperando a resposta. A mãe suspira e diz: “Não pertencem. Mas nós julgávamos que nos pertenciam. Estávamos errados.”

“E pertencem a quem?”

“A eles. Pertencem a eles.”

“Ao homem de óculos e de bandeira que veio trazer a carta?” O filho-menor faz a continência imitando na perfeição os gestos do oficial. Todos estremecem.

“Não. Também não. Pertence às pessoas que nasceram nela.”

“E Angola é Ultramar?”

“Sim. É por isso que temos de partir.”

A mãe-viva-morta pegou na pequena mala que esteve tantos anos por cima do armário, limpou a película de pó entranhada no puzzle do xadrez milimétrico do tecido e abriu-a em cima da cadeira.

“Nasci aqui, é a minha terra. Por que temos de partir?”, perguntou aflito o filho-menor.

“Porque sim, Álvaro, porque sim”, respondeu a mãe enquanto fazia a mala.

“Não quero ir! Não quero ir!”, gritou, num choro. A mãe pegou nele ao colo e, na outra mão, a mala. Fechou a porta atrás de si. Pelo corredor, ouvem-se os gritos: “Não quero ir! Nasci aqui! Angola também me pertence!”

Álvaro ainda tem a câmara do pai, comprada em Luanda, em 1961, no ano do início da guerra. Um dia, o pai teve de partir, para longe, disse a avó, algures, do outro lado do rio, no fundo do rio, onde o rio começava, nas montanhas, não era bem nas montanhas, era na mata, na selva ¾ “não sei bem, meu filho”, dizia.

Durante muito tempo, a Pentax esteve pousada sobre a cómoda. A avó impedia cuidadosamente que o pó se acumulasse, limpando e arrumando um quarto vazio que lhe destruía um quarto da vida. Um dia, o avô pô-la na terceira gaveta forrada com papel amarelo claro (com desenhos de soldadinhos) que embrulhara os brinquedos de Álvaro no Natal ¾ a gaveta junto às calças vincadas de linho claro que o pai vestiria quando voltasse. A avó passava as calças a ferro todas as semanas, para que tudo estivesse em ordem.

e as cinzas? e as cinzas?

Não voltou.

No seu lugar, chegou um homem de farda verde e óculos pequeninos, sotaque da metrópole.

Álvaro ainda se lembra quando o avô lhe deu a câmara, preta, com uma banda metalizada. “Vê, vê” (em vez de dizer “ouve”) “como faz este trrreq-trrreq quando giras o rolo”, dizia o avô com entusiasmo tentado seduzir o neto para a máquina. Álvaro fez birra. Não queria, só queria o pai, “por que é que ele não vem?”, perguntava-se, no outro quarto, branco, iluminado pela lua que entrava abrupta pela janela com vista para a mangueira.

Batem à porta. “Posso?”, pergunta a mãe-viva-morta com a mala na mão.

A mãe-viva-morta senta-se em frente à cama onde se deitará passados anos. Pousa a mala e começa a cantar a música que a avó, que ficara em Luanda, costumava cantar enquanto costurava no quarto branco. Ali, no quarto negro, não havia calças de linho ¾ a mãe cantava entrelaçando as mãos fazendo novelos de lã invisível, tecendo as horas a fio de nylon (cortante) e a sua roupa se manchava, a cada dia, de preto e branco.

O filho-menor, agora um pouco mais velho, entra e senta-se aos pés da cama, ao pé da mãe-morta-viva.

“E a mangueira?”, pergunta o filho-menor.

“Ficou lá, querido”, responde a mãe. Sorri. Mas já não era o mesmo sorriso ¾ contracção do gesto, esforço muscular da face.

Abre-se a porta. A cabeça do avô espreita e fala: “Ana, o telefone está a tocar”.

A mãe corre para o telefone. O avô senta-se na cadeira. Nunca mais atendera telefones desde a morte do pai. Está sempre à espera de más notícias. No quarto, ouve-se a mãe a falar baixinho, com uma voz trémula e lenta. O filho-menor estranha.

“Está a falar com quem?” O avô encolheu os ombros.

A mãe-morta-viva não evitou dizer: “Só eu sei o que ela está a ouvir.”

A mãe entra e anuncia, numa voz calma, que uns homens entraram na casa de paredes brancas da avó e lhe deram um tiro de metralhadora na cabeça. As paredes brancas, contou, ficaram cheias de sangue.

“Pai, não é melhor ir lá limpar aquilo?”

O avô acenou a cabeça.

A mãe continua a relatar: a avó estava vestida de preto, como era hábito desde que o pai morrera, e tinha umas calças de linho branco na mão. Estava a coser junto à janela por onde entrava a lua. Os homens revistaram todos os quartos, porque está tudo mexido, tudo caótico.

“Pai, não é melhor ir lá limpar aquilo?”

O avô acenou a cabeça.

Partiram as loiças todas, deixaram os cacos espalhados pela casa. Levaram as madeiras, as cómodas, os marfins, as pratas, os estanhos, os animais.

“Pai, tem a certeza que não é melhor ir lá limpar aquilo?

“Para quê? Para quê?”, o avô gritou. “Por mais que esfregues não há lixívia que tirará o sarro daquelas paredes.”

e as cinzas? e as cinzas?

Um clique (Pentax, Angola, 1961): o filho-menor fitou pela primeira vez a mãe-morta-viva e vislumbrou-a nos anos que os separavam. O olhar da mãe era estarrecedor. Álvaro pousou a sua mão pesada de consolo no ombro do filho-menor. Um clique ¾ de uma mina que explodia dentro da sua cabeça: o filho-menor sabia agora por que tiveram de partir.

“E a mangueira?”, perguntou ainda.

“Já não haverá mais frutos”, lamentou a mãe. “Eles também cortaram a mangueira.”

Maria David

Nasceu no Porto em 1980. Estudou Ciências da Comunicação em Lisboa e foi jornalista, no Público, durante dois anos. Vive em Liverpool, Inglaterra. É autora do romance Europa.

Rascunho