Pelo bosque, até o lar

Conto de Roberto de Sousa Causo
lustração: Marco Jacobsen
01/05/2008

Havia uma ilusão de paz entre as magras árvores do bosque. O soldado Jorge Braga empurrou para cima a borda do capacete e fez o olhar correr pelos troncos rajados de neve, as manchas brancas se estendendo em faixas longas contra o escuro do solo ainda exposto, tufos de grama amarelada brotando da brancura. Sem sombra alguma de vida animal, a floresta era um recinto vasto e silencioso, flocos de neve caindo ainda, um desanimado confete sem cor. E era apenas outono, na Europa.

O ruído rascante dos disparos que afugentara os animais ainda ecoava em seus ouvidos, como estalos dolorosos. As pernas de Braga se atolavam até os tornozelos na neve, o frio subindo por elas até o peito mal guarnecido pelo uniforme.

Braga tinha se perdido da sua patrulha, durante a emboscada sofrida pelos pracinhas brasileiros há poucos quilômetros dali. O bosque era a sua única proteção. Fora do abrigo das árvores, seria facilmente avistado e feito prisioneiro pelos alemães — se não o matassem à primeira vista.

Nem poderia defender-se. Um projétil caprichoso fizera em pedaços a culatra do seu fuzil. Contava apenas com a baioneta e um par de granadas presas ao cinto.

Ajoelhou-se, apoiando as costas contra um tronco. Seu respirar perdia-se diante de seus olhos, uma breve aparição enevoada. Muito ao longe, ouviu o som cadenciado de um fuzil automático Browning — Puh-puh-puh-puh-puh-puh! — e um eco longo, agonizante. Um ricochete agudo fazendo o contraponto. Silêncio. Os pracinhas ainda recuavam.

Levantou-se. Devia prosseguir enquanto ainda tinha forças. Alcançar um lugar que o abrigasse, antes que anoitecesse e viesse o frio.

Marchou por alguns minutos. O cair da neve aumentava. Diante dele havia uma elevação, árvores penduradas no topo, raízes aparecendo no ponto em que a colina baixa era cortada ao meio. Trotou até lá para abrigar-se, pensando que a neve apagaria suas pegadas. Mas a precipitação faria crescer em centímetros as camadas de neve já estendidas sobre o solo, para dificultar a sua marcha. O próprio ar esfriaria ainda mais, queimando a pele de seu rosto e lhe enrijecendo as vias respiratórias. Já agora os seus olhos pareciam duas bolas de gude tiradas da geladeira e enfiadas em suas órbitas. Piscava continuamente não para lubrificá-los, mas para quebrar a sensação de que os olhos se lhe congelavam na cara.

Apesar das luvas, enfiara as mãos por entre os botões do casacão. As costas lhe doíam, de tanto que tremia. Viera do interior de São Paulo, onde fazia calor a maior parte do ano, e um frio assim era coisa de histórias que vinham de fora, do estrangeiro. Mas ele estava no estrangeiro agora, não estava? Itália.

Tentou ouvir mais algum ruído dos combates, mas nada chegava até ele além de um leve flufar das folhas que ainda se agarravam aos galhos secos. Braga imaginou que os alemães teriam se retirado. Talvez ele pudesse descansar ali, acender uma fogueira com o seu isqueiro, passar a noite. Olhou em torno, pensando em galhos secos para juntar.

Viu um fuzil jogado a um canto, meio em pé, meio deitado.

Deu dois passos incertos em sua direção. Era arma alemã, uma carabina Mauser 98k, montada em madeira maciça, a cor lembrando a cerejeira. A guarda do gatilho mais larga e arredondada que o normal, para permitir seu uso com luvas de inverno. Parte da coronha e do guarda-mão estava embrulhada em um lenço azul-claro, semitransparente, de seda. Estranho. Pano branco para quebrar os contornos de uma arma no ambiente invernal era de emprego comum, mas não um lenço de seda. Finas estampas cobriam o tecido. Gotas de sangue seco, já acastanhado pelo tempo, também o manchavam e à madeira.

Braga acionou o ferrolho, com cuidado. Conhecia os fuzis Mauser, comuns no Brasil, e não tinha dificuldades com o seu funcionamento. O metal estalou e a umidade presa a ele e congelada pelo frio partiu-se num efêmero suspiro de cristais de gelo. Viu a fileira de cartuchos dourados brilhando palidamente na câmara. Tornou a fechar o mecanismo e examinou a trava. O percussor estava bloqueado.

Olhou em torno. Manchas de sangue, largas e redondas como moedas ou sob a forma de rastros compridos, em pontos ainda não cobertos pela neve. Acima dele, alguns troncos expunham seu miolo macio, em feridas alongadas. Projéteis que erraram o alvo humano.

Então um alemão fora baleado aqui, sem tempo sequer de destravar a arma. Bom saber que eles também podiam derramar sangue… Mas onde estava? Carregado pelos atacantes? Não. Não teriam levado o homem e abandonado a arma. Talvez ele tenha sido ferido, apenas. Teria corrido para longe… Os atacantes, parte dos Aliados, com certeza, retornariam para bater o bosque à sua procura, ou seria o alemão ferido que retornaria ao local do tiroteio, acompanhado dos seus amigos?…

Armado novamente, Braga decidiu sair dali.

Escolheu acompanhar o declive que se formava no terreno. O tempo passou e a precipitação de neve se desfez no ar como um vapor inalado pelas árvores, e cessou. O bosque se rarefez, uma suave ravina se abriu diante de Braga. Um riacho descrevia curva elegante, por entre os bancos de neve, suas águas formando gelo junto às margens. Não muito distante dele, erguia-se uma cabana. Feita de pedra e madeira, tinha aparência sólida e antiga. Poucos metros além dela, o bosque reassumia sua densidade escura. Um fio de fumaça escapava pela chaminé.

Jorge Braga empunhou a carabina, e desceu para lá.

***

Tinha apenas um cômodo. O fogão a lenha ao canto, ladeado de um pequeno armário e prateleiras para as panelas que não se penduravam nas paredes. E ainda a lareira a meio caminho, junto a uma das paredes. Na sua boca estreita, o fogo era uma chama solitária entre o brilho vivo das brasas. Braga afastou os olhos da imagem convidativa e terminou de corrê-los pelo cômodo: mesa e três cadeiras, ao fundo uma cama, um baú e um berço. Sobre a cama, um vestido simples.

Não havia ninguém, a menos que… Braga se aproximou lentamente do berço.

Uma menina loura, não mais que seis meses de idade. Os olhos fechados no rosto bochechudo e rosado, tão em paz e tão alheia à guerra que Braga a estranharia menos se fosse um duende ou gnomo encontrado na floresta, como nas histórias da Carochinha. Recuou para não acordá-la.

Encostou a carabina junto à parede, perto da lareira. Pensou em avivar o fogo, mas se mais fumaça subisse pela chaminé, os moradores que deixaram a criança ali tornariam à cabana, e ele ainda não estava disposto a encontrar-se com ninguém. Seriam italianos do lugar, sem dúvida, mas… Um pensamento lhe ocorreu e o fez caminhar até o baú perto da cama. O rangido da tampa sendo aberta… Roupas de mulher, roupas de homem. Não mexeu muito; não queria denunciar sua presença — e alguma coisa no despojado do cômodo e na criança adormecida o fazia aquietar-se, medir os movimentos e a respiração. Além disso, precisava manter o silêncio. Os moradores não teriam saído e deixado a porta aberta e a criança sozinha, se não fossem retornar em breve. Foi então para o lado oposto, as botas raspando o piso de pedra, e abriu o guarda-comida.

Continha alimentos enlatados e defumados, os restos de uma peça de queijo que ainda parecia fresco o bastante, pão embrulhado em papel pardo. Não era realmente muita coisa, mas ainda assim uma provisão rara, durante a guerra e o outono gelado. Braga fuçou aqui e ali, examinando os rótulos nas latas. Em três deles encontrou a águia que segurava a suástica nas garras.

Suprimentos alemães.

Braga recolocou-os no lugar e voltou para junto da lareira e da arma.

Novamente ninando a carabina, foi para uma das janelas de vidro embaçado. Os cristais de gelo presos ali em minúsculos padrões caleidoscópicos. Oferecendo o mínimo do seu perfil, olhou para fora. Apenas o riacho e o bosque escalando a elevação por aonde viera. O sol lançava um brilho sanguíneo por entre a copa das árvores. Em breve anoiteceria. Havia outra janela na parede oposta. Por ela via-se a parede de troncos se erguendo a poucos metros da cabana. Desse lado o bosque era mais denso e se agigantava de maneira ameaçadora. As sombras se acomodavam aos seus olhos, em formas estranhas. Julgou que uma delas era regular em demasia; um retângulo mais escuro, delineando-se entre os troncos. A latrina, ou um rancho de ferramentas.

Então alguém surgiu das sombras e Braga recuou, espiando apenas com um olho o vulto caminhar na direção da cabana. Trêmulo, seu polegar empurrou a lingüeta da trava de segurança para a esquerda, liberando o percussor.

Lançou um último olhar pela janela. Não podia ver muito, na fraca iluminação. O vulto porém parecia curvado, caminhando com passos duros.

Braga foi para junto da porta. Enfiou-se no espaço estreito entre o canto da parede e o guarda-comida, e esperou.

O morador entrou e fechou a porta. Seus movimentos eram tão silenciosos, tão cuidadosos quanto os de Braga, minutos atrás. Quando o vulto caminhou para a lareira e ali ficou por quase um minuto, avivando o fogo e alimentando-o com mais madeira, Braga percebeu que não era um homem, mas mulher de traços finos e olhos grandes e amendoados, sob sobrancelhas densas e escuras. A boca delicada tinha o lábio grosso, porém, descolorido pelo frio. Ela levantou-se e foi para junto da criança. Acendeu um lampião pendurado a um canto, para então enrolar-se num cobertor verde-oliva. Os cabelos negros caíam despenteados pelo vento, em arcos e pontas sobre o tecido. Calçava botas, mas… quando se inclinou para examinar a criança adormecida, Braga percebeu que ela havia enfrentado o clima inóspito lá fora sem se dar ao trabalho de vestir-se.

De fato, um segundo depois a mulher livrou-se do cobertor, jogando-o sobre a cama. Vestia apenas uma camisa-de-meia.

As costas voltadas para ele, ela acocorou-se diante do baú. Braga cerrou os olhos por um instante. Violava mais do que um domicílio, mas tornou a abrir os olhos. Lembrava-se da águia-e-suástica estampada nas provisões. Não era simplesmente uma família solitária, escondendo-se da guerra na cabana oculta no bosque.

Suas nádegas muito redondas e as coxas estavam avermelhadas. À luz do lampião, pôde ver que a pele arrepiava-se. Os cabelos de entre as pernas pareciam molhados, e Braga entendeu que ela havia se esfregado com neve. Despiu a camisa-de-meia, e ele enxergou a pele do busto e do pescoço também avermelhada pelo atrito gelado. Agora era uma velha toalha que ela puxava do baú, e, endireitando-se, esfregava-se com ela, do púbis às axilas. A carne macia dos seios balançava ao toque.

A mulher tornou a mexer no baú e tirou de lá peças de roupa. Segurando ainda a toalha e agora as roupas, foi para junto da lareira. Com lentidão, esfregou o tecido áspero no peito e nas pernas. Braga susteve o fôlego. Sob a luz do fogo o que observava era o corpo esguio de uma mulher jovem e bela, quadris largos e seios redondos. Jovem e saudável, mas podia ver que estava um tanto apenas magra demais, de pulsos finos e os ossos do peito aparecendo acima das mamas.

Então, de súbito ela levantou o rosto antes concentrado na tarefa de espantar o frio do corpo, e olhou primeiro para o berço. Em seguida, lentamente, seu olhar moveu-se para o canto em que Braga estava. A toalha imobilizou-se contra o seu peito.

— Jürgen? — perguntou, a voz sumida.

Braga ouviu bem o nome alemão. Deu um passo à frente e estendeu a mão esquerda, num pedido de calma. Os olhos da mulher arregalaram-se quando ela percebeu que não era o seu amiguinho Jürgen, mas não gritou nem se moveu.

A mão esquerda de Braga retornou para junto de seu peito.

Soldato brasiliano — disse.

Brasiliano? — a mulher ecoou.

— Com il alianno… alianni.

Ela soltou uma enxurrada de palavras, que o seu italiano de dicionário de bolso falhou em acompanhar. Percebeu um traço de histeria, de medo em sua voz rouca. Tocou os lábios com o indicador, e, com o silêncio dela, apontou para o seu corpo e fez um gesto com a mão livre, animando-a a vestir-se.

Ela deu-lhe as costas e meteu-se na saia e na camisa de mangas compridas. Puxou os cabelos negros para fora, e voltou-se outra vez para ele. Braga não deixou de interpretar o gesto como contendo certa petulância.

A jovem despejou uma avalanche de frases rápidas, que passaram incólumes por Braga.

Parla piu lento, per favore — ele pediu, fazendo careta diante da própria pronúncia.

Mas a jovem entendeu, e falou mais pausadamente. Queria saber se estava sozinho, e dizia que ele não podia ficar. Braga fez uma negativa com o dedo em riste, interrompendo-a. Apontou para o guarda-comida.

— Nazista — disse.

Ela apontou o próprio peito, armou uma expressão chocada no rosto, e disse eco, non io. Ao mesmo tempo, não tirava os olhos da carabina.

— É fòla. Jürgen qua? — Braga perguntou.

Ela disse que não, Jürgen não estava ali.

Quàndo regrèsso?

Um outro olhar dirigido à arma.

Non regrèsso — ela disse.

Braga bateu na coronha, com a mão enluvada.

La carabina di Jürgen?

Sí, ma non venire qua, non regrèsso. — E ela começou a chorar.

Braga esperou por um longo tempo. A criança despertou e uniu-se à mulher. Só então ela respirou fundo, enxugou as lágrimas e foi ter com a filha. Braga estava agora junto a uma das janelas e alternava olhar para a mulher e para fora. Jürgen não voltaria, não voltaria porque a carabina com o lenço ensangüentado pertencera a ele. Podia confiar na mulher? Ela também pertencera a Jürgen…

Dera as costas a ele, enquanto amamentava a criança. Vez ou outra ele via seus ombros se arquearem, num soluço sufocado.

— Qual é o seu nome? — perguntou, removendo o capacete e colocando-o junto à parede. — Nóme?

— Angela Alberione — foi a resposta.

Com algum esforço, Braga perguntou quem era Jürgen, qual era a sua posição nas forças alemãs e o que a mulher tinha a ver com ele. Devia ser o pai da criança…

Cosa importa adesso? Lei é morto — ela disse, e Braga teve de obrigá-la a repetir.

Le… amice de lui fanno invita per te? — perguntou, lembrando-se de certas conversas de bordel, com italianos. Outros homens a visitavam?

Adesso andare via per piagere.

Mais uma vez, teve de pedir que ela repetisse o que havia dito. Ela o fez, e acrescentou:

Non sono una putana.

Teria respondido com um comentário irônico, se dominasse o suficiente a língua. Ao invés e a custo, explicou que não poderia sair, se fosse encontrar os amigos de Jürgen no caminho.

Nessuno sapere que lui visitara a me.

Ponderou sobre isso. Se ela fora a amante exclusiva de Jürgen, e ninguém sabia que ele freqüentava a sua cabana, talvez outros alemães não aparecessem para reclamar os mesmos favores, ou procurar pelo companheiro desaparecido. Poderia ficar ali por algum tempo ainda, abrigado do frio. E a verdade era que no momento não tinha para onde ir. Passaria a noite, de manhã faria um reconhecimento solitário pelas vizinhanças. Se não visse sinal de movimentação recente do inimigo, tentaria retornar às linhas brasileiras.

Gesticulando muito, disse à mulher que passaria a noite.

Non

Sí.

Seu tom não deixava dúvidas. Angela fuzilou-o com seus grandes olhos castanhos, e levantou-se para ter novamente com a filha. Braga acompanhou-a com os olhos. Ela se debruçou sobre o berço e brincou um instante com a criança. Braga levantou-se e foi até uma das janelas. A mesma paisagem gelada. Agora porém a noite já havia se instalado… Pensou ver uma sombra passar dos galhos de uma árvore para os de outra. Talvez um pássaro…

Ouviu a tampa do baú sendo aberta.

Virou-se para surpreender a mulher puxando do baú uma pistola escura.

Instintivamente, avançou para ela e derrubou a arma de sua mão, com um movimento largo do braço direito. Puxando o braço de volta, esbofeteou-a com força. Ela cobriu a face ofendida com as duas mãos. Braga procurou com os olhos a pistola, que encontrou caída perto da parede, a três passos de distância. Italiana, uma Beretta Modelo 1934. Enfiou-a no bolso da calça e tornou a avançar sobre a mulher.

Ela recuou para junto da parede e cobriu o rosto com os braços. Reprimindo a raiva, Braga deixou-a estar. Sua atenção se voltou para o baú, que ele tombou no chão e cujo conteúdo espalhou e pisoteou com as botas. Não havia mais nenhuma surpresa nele guardada, apenas roupas e sapatos.

A criança chorava, assustada com o barulho. Angela se afastou da parede e foi balançar o berço, olhando Braga com olhos muito abertos e assustados. Ele notou que o lado direito do seu rosto estava vermelho e o canto do lábio inchado.

Ele mesmo ofegava. Limpou a boca com a mão enluvada, olhou em volta e então para a mulher.

— Nunca mais faça isso — disse em português, sentindo com os dedos a pistola no bolso. — Não tenho gosto em bater em mulher, mas não faça mais isso.

Angela tinha a criança no colo, e ninava-a para que parasse de chorar. Os olhos castanhos fincavam-se com raiva no rosto de Braga.

A neném loura foi recolocada no berço, depois de alguns minutos. Braga, ainda trêmulo, encarava Angela com desconfiança. Tinha a carabina firme nas mãos, a Beretta no bolso. Aos poucos baixou a carabina e foi para a cozinha. Dali, sentado junto à mesa, podia vigiar a mulher. O que fazer? Talvez o melhor fosse partir… Estava claro que ela não o queria ali. Observou-a. Sentava-se na cama, encarando-o com um ar que devolvia a desconfiança dele. Então afastou os cabelos do rosto e foi até a cozinha. Parou em pé, junto ao armário, uma interrogação no rosto.

Manja… manjare? — Braga perguntou, evitando encarar o ponto avermelhado em seu rosto.

Angela foi até o armário e retirou os mantimentos, colocou-os sobre a mesa. Devagar, apanhou os talheres e pratos, colocou-os sobre a mesa. Braga sentiu-se estranhamente comovido pelo corpo feminino realizando esses pequenos gestos domésticos. Estava faminto e embaraçado e por isso concentrou-se em comer. O queijo, o pão, as rações diminuíram e desapareceram de seu prato. Só então percebeu que Angela comia com extrema parcimônia.

“É claro”, pensou, recordando a sua nudez, as costelas aparecendo. Ela não tinha muito mais do que isso, e amamentava… No mesmo instante sentiu-se que a vergonha renovava-se. Em menos de uma hora havia esbofeteado uma jovem mãe e se fartado com seus mantimentos. E a surpreendido sem roupas… Não saberia como pedir desculpas em sua língua, mas talvez pudesse compensar por ter se servido de sua comida.

lustração: Marco Jacobsen

Só conseguiu dormir graças ao cansaço. Ao seu lado na cama, Angela agitara-se a noite toda, sem sono, praguejando ou orando baixinho, ele não sabia precisar. Havia protestado diante da sua insistência em dormir na mesma cama com ela. Seria tão fiel assim a Jürgen, ou eram apenas os muitos temores que se acumulavam? Braga não queria assustá-la ainda mais, mas depois da prestidigitação de Angela com a pistola, precisava manter-se próximo e vigiá-la. Por outro lado, não pretendia abrir mão do calor que o seu corpo, deitado ao lado dele, pudesse lhe conferir.

A Beretta estava embaixo do travesseiro, o Mauser 98k tinha a bandoleira amarrada ao seu pé direito. Dormiu um sono entrecortado, quebrado definitivamente pela fraca claridade matutina a entrar pelas janelas.

Levantou-se e apanhou as armas. Dormira de uniforme, e agora o completava calçando as botas. A mulher, que também dormira vestida, levantou-se e apanhou a menina do berço. Braga agarrou o cinto n.a. que o esperava ao lado da cama, e o afivelou à cintura. Deixou o capacete na cozinha.

— Já volto — disse. Apontou para a porta e fez que não com o indicador em riste. — Não tranque.

Antes de sair, olhou para fora, para todas as direções, e para o bosque ainda escuro à sua frente. Os reflexos militares ainda estavam vivos, e ele não se deixaria enganar por qualquer ilusão de tranqüilidade. As tropas alemãs desalojadas pelo avanço dos Aliados ainda não haviam recuado totalmente. Patrulhas ou soldados desgarrados com certeza perambulavam pela área.

Braga cobriu a curta distância entre a casa e as árvores com uma corrida rápida, patinando na neve.

O bosque ainda cobria-se com o lusco-fusco do alvorecer; fazia mais noite do que dia, e era com isso que ele contava — para manter-se oculto de eventuais olhos humanos, e para se aproveitar da atividade noturna dos animais.

Em casa, nunca fora muito o caçador; mais um pescador de fim de semana. Contudo, conhecia o suficiente dos hábitos dos animais. Foi caminhando adiante, a carabina pronta nas mãos, a coronha firme sob a axila direita e o cano apontado para baixo. Com freqüência olhava por sobre o ombro, tentando memorizar o caminho de volta à casa de pedra. Não queria repetir o erro que o separou da sua unidade.

Agora, porém, encostava-se no tronco de uma árvore e tentava com os olhos atravessar o ar nevoento e reconhecer o terreno à frente. Após uma suave subida por entre as árvores, o terreno se curvava num grotão profundo, brumoso e parcialmente bloqueado por árvores caídas.

Aos poucos a visão foi se tornando mais clara. Era um brechão de pedra, encostado à parede escarpada. No degelo, com a chegada da primavera, as águas que desciam da montanha cavariam ainda mais a fina camada de solo, expondo mais pedras, derrubando mais árvores. Talvez mesmo agora pequenos animais viriam até ali, para beber da água cristalina que deslizava por entre as pedras.

Um lugar sombrio. Pouca luz chegava até ali, bloqueada pela montanha, e gazes de névoa penduravam-se entre as árvores. Braga sentiu-se tomado por uma onda de temor, misturada a uma aguda curiosidade. Qual era a fonte do temor? Tanto tempo vivendo sob o medo de morrer em combate, fizera-o se esquecer de medos mais básicos, de locais escuros ocultos no coração da floresta, do que poderia viver ali, em lugares que os pés humanos tão pouco pisavam. E não pensava apenas nos animais selvagens.

A imagem nua de Angela surgiu em sua mente, como um antídoto para o seu temor. Seu corpo jovem corado de frio, as pernas esguias, seios redondos e cabelos negros… Sentiu uma onda morna de desejo afastar o medo, tornar menos assustadora a paisagem glacial diante dele. Descolou-se da árvore, deu dois passos adiante, encostou-se em outro tronco. Por ali havia ainda muitas árvores penduradas no declive que levava ao grotão.

Braga pensou enxergar um vulto descolorido movendo-se entre os troncos. Enristou, num reflexo, a carabina. Não pensava ter visto um animal, mas um homem.

Amigo ou inimigo?

Não o via agora. Teria sido uma ilusão? A custo, baixou a arma.

Então tornou a vê-lo — a mesma impressão fugidia de um homem caminhando por entre os troncos. Apontou a Mauser para ele — o vulto tornou a desaparecer.

Braga, o coração agitado, moveu-se dez passos para adiante, tropeçando no terreno em declive. Quando se deteve pela terceira vez, percebeu seu erro — ao mexer-se, denunciava a sua posição a quem mais pudesse estar ali. Quedou-se imóvel, controlando o fôlego e olhando em torno. Agora podia ouvir o ruído de água corrente.

Viu então os animais, mais fundo no grotão. Um bando de veados. Era um deles o que ele vira, pois, provavelmente confundindo o pescoço esguio com o tronco de um homem…

Cinco ou seis. Um veado grande de galhada alta, postura alerta; um macho jovem; duas fêmeas, um filhote. Braga devagar levou a carabina aos olhos. Apontou primeiro para o grande macho. Mal enxergava a massa de mira, na penumbra da floresta. Desistiu do grande macho — seria pesado demais para carregar até a casa de Angela. Fez mira sobre uma das fêmeas. Mas como saber qual era a mãe do filhote?… Por um instante ele agonizou sobre a decisão de atirar. Lembrou-se de Angela e sua filha… O percussor já estava livre, o dedo pronto no gatilho, quando ele apontou finalmente para um macho jovem, sua galhada mal divisível a distância. Os animais estavam a menos de cinqüenta metros, calculou. Dentro do primeiro ajuste da alça de mira do Mauser: cem metros. O aparelho de pontaria não estava regulado para a sua visada, porém, e por isso o risco de errar não era desprezível — mesmo com os animais lá embaixo quase imóveis, bebendo água ou farejando o ar frio em redor.

Podia ver a massa de mira agora, o indicador fez mais pressão sobre o gatilho.

A coronha golpeou-lhe o ombro. O disparo soou duro, e então ecoou contra o paredão de rocha. Lá embaixo o jovem macho caiu, os outros veados saltaram para longe, para todos os lados, sumindo em instantes por entre as pedras e os troncos.

Braga colocou a carabina em bandoleira e desceu o mais rápido que pôde, tropeçando e escorregando nas pedras e na neve. O veado ainda chutava a água límpida, que escurecia rápido com o seu sangue. E gritava. Um bufar animal cujo desespero e dor eram ampliados por seu eco. Braga notou que o projétil o atingira muito recuado, não perfurando o seu peito como ele pretendia. Logo tornou a empunhar a carabina, armou outra munição na câmara, mas hesitou em atirar novamente. Mais um tiro da carabina poderia chamar a atenção de alguém que estivesse por perto — e os agora quatro cartuchos dentro da Mauser seriam a sua única defesa, diante do surgimento de qualquer inimigo.

Diante disso, toda a idéia da caçada lhe pareceu imensamente estúpida. Mas o animal ainda berrava diante dele, e Braga lembrou-se da Beretta em seu bolso. Sacou a pistola, carregou-a e disparou um tiro certeiro na cabeça do animal.

Agora, outra tarefa ingrata — arrastar o seu peso grotão acima.

***

— Eu falei pra você não trancar a porta — Da cabana de pedra vinha apenas o soluçar insistente da criança. Angela mantinha um silêncio teimoso. — Abre a porta, mulher. Eu trouxe carne. Caça. Comida. Manjare, hã? Pra você.

Nenhuma resposta. Será que ela havia partido, abandonando a criança? Talvez tivesse corrido para algum posto alemão próximo, avisar da presença do soldado brasileiro. Braga, compreendendo que cometera outra estupidez, bateu na porta com a coronha da carabina, em desespero.

— Posso estourar a fechadura com um tiro — ia dizendo em português —, ou jogar uma granada pela janela.

A porta abriu-se. Braga imediatamente entrou e olhou em torno, deixando o animal abatido do lado de fora. Angela de costas para ele, caminhava até o berço. Curvou-se, apanhou a criança e a embalou. Dirigiu um breve olhar furtivo a Braga. Ele pensou em repreendê-la, mas estaria esbravejando numa língua que ela mal compreendia, então optou em arrastar o veado para dentro, até o chão de pedra da cozinha. Exausto com o esforço, deixou-se cair em uma cadeira. Olhou em torno, lembrando-se do seu capacete, mas pelo jeito Angela o havia escondido. Afinal, o capacete de fabricação americana era um objeto que poderia comprometê-la, se alemães aparecessem.

Angela veio até a cozinha, a criança no colo. Lançou um olhar crítico para a carcaça do veado. Seu olhar logo se transformou numa expressão de interesse claro, de fome evidente.

Os dois passaram a manhã destrinchando e preparando a carne. O que não foi assado foi enfiado em um balde de neve e depositado no barracão lá fora. Os restos não aproveitáveis Braga juntou num embrulho feito com o couro do animal, e foi jogá-los mais de cem metros no meio da floresta, longe da cabana.

Eles comeram e conversaram.

Braga apresentou-se. Forneceu o seu nome e a localidade em que nascera, no Brasil. Angela não demonstrou interesse. Ele perguntou-lhe como havia conhecido Jürgen. A princípio ela fingiu não entender, mas diante da sua insistência, terminou por contar. Falava sem concessões ao seu italiano limitado, mas ele compreendeu — ou achou que compreendeu. Jürgen fora transferido para uma aldeia próxima em 1944, um ano antes. Braga soube então que ele deveria pertencer uma tropa já há algum tempo ocupando o lugar, e não fazia parte das hostes alemães que se transferiam para ali em retração, com o avanço dos Aliados. Afinal, não poderia ser diferente — a pequena nenê loura atestava a presença dele ali havia algum tempo.

E quanto a Angela? Não era do lugar, mas uma refugiada, cuja família fora morta em um bombardeio. Ao passar por ali, despertara a atenção de Jürgen, pelo que Braga entendeu. Ele a mantivera na casa de pedra retirada da aldeia, semi-oculta no bosque, e vinha provendo as suas necessidades desde então. A criança nascera, o segredo mantivera-se. Mas logo chegaram os Aliados e a situação dos três em pouco tempo tornara-se insustentável.

Um pensamento ocorreu a Braga.

— Jürgen… desertor? — perguntou, mas ela não conseguiu entender.

Fazia sentido. Seria, a médio ou longo prazo, o único modo de manter o estranho idílio do casal e sua filha, em meio à guerra. Braga agora encarava Angela com outros olhos. Mulher que havia inspirado um duro soldado alemão (ele imaginava) a desertar… Lembrou-se novamente do local no bosque onde encontrara a carabina. Foi naquele momento, que Jürgen desistira do seu juramento de soldado? Vinha ele trazer os últimos mantimentos marcados com a águia e a suástica, que pudera obter?

O que faria a partir de então? Enterraria o uniforme e a carabina Mauser, passaria a fingir-se de louro aldeão italiano, até o fim da guerra. Uma decisão perigosa. Se fosse apanhado pelos Aliados, seria fuzilado por espionagem. Se pego pelos seus amigos, morto como desertor… Tudo isso por Angela.

Ela e Braga partilharam o mesmo leito, como no dia anterior. Desta vez porém Angela não resmungou à noite, e ele, ainda mais exausto, mergulhou rápido no sono mais profundo.

***

Braga despertou com as mãos da mulher sacudindo-o. Imediatamente buscou a pistola sob o travesseiro, sentou-se na cama empunhando-a. Angela agarrava-se trêmula a ele; então não era dela que partia o ataque… Olhou em torno. Viu o vulto de um homem, parado diante da cama. Sem hesitar, Braga disparou. No mesmo instante, o vulto como que se iluminou — um homem de meia-idade, corpulento e louro ou grisalho, materializou-se de fato diante dele, como se tivesse luz própria. Olhava-os com um cenho franzido, e Braga, reagindo por instinto, atirou outra vez. O único resultado foi um som de ricochete vindo da cozinha.

Mas como?…

Afastou o cobertor com a mão livre e, dobrando-se, tentou alcançar a carabina aos seus pés. Angela, porém, segurou-o. Do outro lado da cama, a criança emitiu um choro procrastinado.

Braga encarou a mulher. Tinha os olhos arregalados, o lábio inferior grosso e pálido tremia.

Ve’, Jürgen — balbuciou.

Seus olhos então se desviaram dela para o invasor. Mas a sua figura não estava mais lá.

Braga saltou da cama, apanhou a Mauser; suas mãos trêmulas a empunharam e com ela ele correu até a cozinha. Não havia ninguém. A porta então… Trancada. Desnorteado, olhou em torno: Angela congelada na mesma pose, o mesmo olhar vítreo e lábios trêmulos; um buraco na parede da cozinha, cavado por um dos projéteis. E o som esgoelado do choro da neném.

— Jürgen… — Angela tornou a balbuciar.

***

Devagar Braga retornou à cama. Havia examinado a entrada da casa, sem encontrar pegada alguma no lençol de neve que se estendia diante da porta. Depois acendeu o lampião na cozinha e examinou a Beretta atentamente, para encontrar tudo no lugar, o cano correndo firme na culatra, projéteis bem presos aos cartuchos. E havia o buraco nos fundos da cozinha, onde o projétil disparado havia lascado uma panela pendurada.

Enquanto ele se movia como um tonto de um lado a outro da casa, Angela acalmava a criança, dava-lhe o peito para calar seu choro.

Agora sentado na cama, tornava confusamente a refletir. O melhor talvez fosse ficar de guarda junto à porta… Mas Angela puxava-o para debaixo dos cobertores. Suas mãos pequenas tremiam. Ela gemia, proferindo palavras cujos sentidos escapavam-lhe. Braga recolocou a pistola sob o travesseiro, encostou a carabina na parede ao lado da cama, e cedeu aos apelos da mulher. Ela agarrou-se a ele, escondeu o rosto em seu ombro. Soluçava, e em pouco tempo ele sentiu a umidade de suas lágrimas vencerem o brim grosso da túnica carioquinha.

Começou a afagar seus cabelos, sua nuca, tentando acalmá-la. O toque tinha o mesmo efeito sobre ele. Teria realmente visto e disparado contra um homem de meia-idade, um civil que invadira a casa em silêncio e saíra incólume, deixando a porta trancada? Ou tudo não passara de um pesadelo, sua reação ao susto de ter sido arrancado do sono tão abruptamente por Angela?

Como que negando os seus pensamentos, ela murmurou:

Jürgen… però vecchio. Molto vecchio…

Jürgen, outra vez… Seria possível? Mas por que Angela estaria tão assustada com o ressurgimento de seu amante?

Jürgen, morto. Morto…

Sim. Jürgen estava morto, ele compreendeu. Morto, e ele havia disparado contra o seu fantasma.

***

Angela continuava a tremer e a balbuciar, apesar dos seus afagos. Ela então o envolveu com seus braços. Suas mãos encontraram a pele por baixo da túnica de Braga. As mãos dele encontraram a pele por baixo da camisola de Angela. Era macia e aveludada… E seus lábios eram grossos e úmidos como os gomos de uma fruta madura, ao mesmo tempo doces e salgados com as lágrimas que desceram até eles. Beijou suas faces, seu queixo e pescoço.

— Giorgi — Angela murmurou. — Giorgin…

Braga levou alguns segundos para compreender que era a ele que ela chamava. Giorgi, Jorge… Mas não havia um eco de Jürgen sob o som, como se, ao chamá-lo, Angela quisesse abafar o nome do antigo amante? Em verdade, afastar o fantasma do homem morto?

***

— Minha família veio de Portugal pro Brasil na virada do século passado. Simplesmente não havia futuro pra eles, na região em que viviam. Tudo o que queriam, ao chegar ao Brasil, era se estabelecer num lugar em que pudessem viver em paz, numa casa que fosse deles, um lugar sossegado…

Como aqui, Braga completou mentalmente, sorrindo um instante depois. Um absurdo. A cabana de pedra em que Angela e sua filha moravam estava longe de ser um “lugar sossegado”. Por um lado, a guerra girava em torno deles, o troar dos canhões soando naquela mesma manhã, para além do horizonte; por outro, rondava o perigo da fome e do frio, na floresta gelada. Ao lado dos dois, na cozinha, um braseiro ardia em silêncio, lembrando-os do frio lá fora. O inverno não tardaria a chegar… ou antes dele, os alemães.

Mas era absurdo também contar a Angela a história da sua vida, em uma língua que deveria soar a ela apenas longinquamente familiar, quase totalmente incompreensível.

Depois de fazerem amor durante a noite, porém, precisava aproximar-se mais, por outros modos. Afastar a imagem do invasor armado… Ou fazer o que ela precisava que ele fizesse — sobrepor a sua presença à de Jürgen…

A expressão de Angela era agora de atenção. Os olhos castanhos correndo por seu rosto, às vezes centrados em sua boca, tentando ler as palavras. Mas ele calou-se. O que havia a dizer? Eram prisioneiros da cabana de pedra, e da distância que havia entre ela e qualquer lugar seguro. Então Braga estendeu a mão para Angela, guiou-a até que contornasse a mesa, fez com que se sentasse em seu colo. Suas mãos deslizaram devagar pelas pernas, pela cintura… Havia tanto a descobrir, a conhecer…

Antes que fosse tarde.

***

No quinto dia de sua estada com Angela Alberione, Jorge Braga afastou-se da cabana, caminhando à primeira hora do dia para a beira do rio, e de lá, seguindo a montante, para longe.

Nesse dia, Angela havia finalmente revelado a ele o nome de sua filha: Letizia. Pronunciara a sonora palavra na cama, em seus braços. Por alguma razão, isso deu a Braga a certeza de que a situação que viviam era insustentável. Era preciso tirar a mulher e a nenê do lugar, levá-los até as linhas aliadas, encontrar para eles abrigo e segurança.

Por isso ele caminhava, carabina nas mãos, mantendo-se na linha das árvores. Nevava um sopro de flocos minúsculos, que caíam em uma insinuação molhada contra as suas roupas. A neve transtornava a sua percepção de distância — com o ar povoado de grãos brancos, os metros pareciam esticar-se. A distância, erguiam-se os colossos montanhosos dos Apeninos, rajados de neve e fantasmagóricos por trás da bruma. Supôs ter marchado um quilômetro, um quilômetro e meio a partir da cabana. O terreno inclinava-se para cima, os bancos de neve ganhavam fundura, a marcha passou a arrastar-se.

Então viu que a passagem estreitava-se entre o riacho e uma projeção de pedra — muralha sólida que surgia de entre as altas árvores de galhos em alvas mangas de neve, para estender-se junto d’água. O lugar ideal para armar uma emboscada. Do alto, uma metralhadora montada em tripé cobriria todos os ângulos, todos os lados.

Mas ele não sabia se havia alguém ali. A dúvida o fez estacar. E então olhar para trás. Quase podia ver o corpo moreno de Angela, nu diante dele, seu sorriso largo e tristonho, seus olhos demandando esquecimento e segurança, vida e obliteração simultâneas. Esquecer Jürgen no corpo de Jorge, encontrar nele uma saída para o futuro. E o soldado em pé, os tornozelos enfiados na neve e as costas contra a matéria dura de um tronco, prensado entre o corpo que aprendera a conhecer em detalhe, e a brutal ignorância do que o esperava alguns passos mais adiante.

O que seria de Angela e de Letizia, se ele fosse morto?

Deu meia-volta. Tentaria um outro caminho, do outro lado do rio, em outro dia.

***

Uma semana com Angela… Não se lembrava mais do episódio em que ela tentara apontar-lhe a pistola. Tanto que com surpresa é que esbarrou na arma, esquecida embaixo do travesseiro.

Agora em pé, o fardamento envergado, os coturnos amarrados nos pés, voltava a colocar a Beretta em um dos bolsos da calça — e a empunhar a carabina.

A comida não duraria muito mais tempo. Antes de partir novamente, para tentar um caminho de volta às suas linhas, ele pretendia caçar um outro veado para Angela. Se demorasse a retornar — ou se não retornasse —, ela teria o que comer por algum tempo mais.

Desta vez seguiu descendo o rio. Suspeitava que o curso d’água arqueava-se para a esquerda, formando o brechão onde ele caçara o primeiro veado. No caminho, Braga memorizou dois pontos em que o riacho podia ser vadeado. Mantinha-se dentro da linha das árvores. Havia dias que não ouvia o troar dos canhões ou o ronco dos aviões de observação, mas ainda poderia haver patrulhas ou homens desgarrados, como ele, de ambos os lados perambulando por ali. Vestindo o uniforme dos aliados mas carregando uma carabina alemã, ele seria um alvo confuso mas provocador para qualquer um que com ele se deparasse.

Como havia suposto, o riacho dobrava-se para a esquerda. O terreno se tornava pedregoso ao longo das suas margens, e inclinava-se agudamente em uma ravina. Ao redor, as árvores pareciam crescer mais altas, mais antigas, e a neblina estirava-se entre os seus galhos, esgarçada ou adensada, escurecida ou brilhante, conforme era abraçada pela escuridão ou pelos raros raios de sol. E havia uma vida estridente ali. Pássaros saltavam de galho em galho, bem alto acima de sua cabeça. Estariam denunciando a sua posição, a um observador oculto?

A largura do riacho começou a abrir-se; ele se aproximava do brechão.

De fato, a água deixava de correr rápida para frente, e passava a redemoinhar, empoçando-se em piscinas formadas pelas pedras. Seria difícil atravessar esse trecho, Braga refletiu, apreciando como as rochas nas margens cobriam-se de gelo e como a água parada logo se transformava em uma lâmina semelhante ao vidro.

E então viu.

Um homem. Congelado ali, sob o gelo.

Devagar escorregando pelas pedras e depois se metendo até as coxas na água gelada, as pernas feridas pelas lascas de gelo, Braga aproximou-se.

Era um sujeito comprido, vestindo o uniforme alemão. Divisas de cabo nos ombros… Uma perfuração na altura da cintura, e ainda carregava as bandoleiras com os pentes de cinco munições para a Mauser cruzadas no tronco. O dono da 98k.

Jürgen.

Louro como supusera, mas como tinha as costas voltadas para ele, não pôde conhecer o seu rosto.

***

Jürgen tentara chegar até Angela, mas não conseguira cruzar o riacho e fora arrastado por suas águas. Até que Braga o encontrasse em sua prisão de gelo e o arrastasse de volta e enfim para a cabana. Agora ele o tinha repousando na mesma pose congelada, mas com o rosto voltado para cima, como cabia a um homem devidamente sepultado.

Mas não era um homem, e sim um menino. Dezesseis anos, dezessete, no máximo, embora mais alto do que Braga.

— Qual era a idade dele? — perguntou a Angela, que esperava em pé ao lado dele, a pequena Letizia em seus braços.

Sedicènne — ela respondeu.

Dezesseis…

Braga já tinha visto meninos como este, antes. Bem armados e capazes, enviados para a guerra por um país já sem recursos humanos suficientes para enfrentar o avanço aliado. Mas meninos, ainda. Como, então, o seu fantasma se havia apresentado como um homem maduro?

— E você? — lembrou-se de perguntar, pela primeira vez.

Venti e due…

Apenas um ano mais nova do que Braga…

Olhou para a criança nos braços de sua mãe. Jürgen fora grande o bastante para a guerra, crescido o bastante para o amor.

Atirou o seu uniforme sobre o cadáver. Vestia as roupas civis que o próprio Jürgen tinha arranjado para si, folgadas em seu corpo. A cova rasa fora cavada em um recanto entre as árvores, perto o bastante da cabana de pedra para que Jürgen se sentisse em casa, sentisse que havia finalmente cruzado o bosque onde fora alvejado, e chegado ao lar que havia escolhido. Faltava apenas uma coisa, antes de cobri-lo de pedras.

Braga descruzou a Mauser 98k pendurada pela bandoleira em seu peito, e, segurando-a pela coronha e pelo guarda-mão, lançou um último olhar para o seu elegante perfil, e devolveu-a a Jürgen.

O sepultamento terminado, Braga encarou Angela. Ela devolveu o seu olhar de maneira tímida, envergonhada. Havia chorado muito, ao ver o corpo do antigo amante. Jürgen… Jürgen… havia balbuciado, e Braga sentira que o nome alemão — Jürgen — empurrava o seu Jorge para longe…

Mas lá estava ela, vestindo suas roupas de inverno, o rosto embrulhado em um lenço escuro e pesado. O rosto corado, os olhos castanhos brilhantes. O jovem Jürgen vivera com ela, na medida em que a guerra o permitiu. Roubara instantes dos seus deveres, talvez recorrera à sua imagem morena e esguia nos momentos de terror, dor e pânico. Como Jorge fizera, várias vezes, em suas andanças ou tarde da noite, enquanto meditava sem otimismo, sobre o futuro.

Ela havia sobrevivido. Sua associação com o menino alemão garantira a sua sobrevivência. Teria recebido os seus avanços do mesmo modo com que recebera Jorge, o intruso? Talvez uma faca segura nas mãos, ao invés da pistola… Ou teria havido amor à primeira vista, entre a refugiada italiana, de pais mortos e irmãos desaparecidos, e o soldado alemão que ocupava o seu país? Entre a mulher e o menino. Mas o que importava neste momento era que a sua nova associação com Jorge deveria continuar a garantir a sua sobrevivência — e de Letizia.

Por mais que relutasse, seus olhos enxergavam Angela agora como um espírito cínico, que se agarraria a qualquer chance, a qualquer um que lhe desse um mínimo de conforto diante da adversidade, um mínimo de segurança diante da ameaça constante da guerra.

Desviando os seus olhos dela, apanhou a trouxa com os mantimentos e a atirou por sobre o ombro. Começou a afastar-se, sem se importar se Angela já o seguia ou não. Tinham uma longa estrada pela frente, e com a certeza de muitos perigos. Conservava apenas a Beretta 1934, que ia escondida numa sacola, e não tinha ilusões quanto à sua eficácia em lidar com os inimigos que surgissem. Inimigos que se multiplicavam. Alemães, certamente, mas agora até brasileiros, americanos e outras tropas aliadas transformavam-se em inimigos para Jorge, o desertor.

Já perto do riacho, olhou para trás. Angela não havia tirado o pé do lugar. Tinha Letizia aninhada em seu colo, e olhava para ele com olhos aflitos. Reconhecera nele as suas recentes desconfianças e a sua muda condenação. Ficaria? Arriscaria a sua vida e a da menina, para deixar claro que não era a vagabunda por que ele a tomara, na primeira vez em que se encontraram?

Os olhos de Jorge a deixaram — e incidiram sobre os dois vultos que a tudo observavam, junto à parede de pedra exposta, da cabana.

Um deles era o Jürgen de meia-idade, nas mesmas roupas de camponês italiano que Jorge agora vestia. Havia um meio sorriso em seu rosto, lembrando talvez o menino que ele um dia fora.

Mas quem era o outro?

Jorge deu dois passos na direção da construção de pedra — e de Angela e Letizia. Queria enxergar melhor o segundo fantasma… Jürgen trouxera um amigo do outro mundo? Um homem moreno e barbado, mais baixo do que ele, de uniforme e com um fuzil nas mãos. Difícil reconhecê-lo, porque estava ferido — não, morrera em combate, é claro. Havia sangue em sua cabeça, e no peito. Seu fuzil era um m1… Portanto um soldado americano, ou brasileiro…

Com uma súbita opressão no peito, Jorge Braga reconheceu no segundo fantasma o seu próprio rosto mutilado.

***

O que era um fantasma, afinal? Uma alma perdida fazia um fantasma. Laços não desfeitos faziam um fantasma. E talvez uma vida abortada. E um destino desviado.

Jorge portanto observava dois destinos possíveis, afetando dois homens que não poderiam ser mais diferentes, mas dois destinos igualmente deixados para trás. Soube assim que escolhia a vida, e quando o pensamento lhe ocorreu, seus olhos mudaram o foco, prenderam-se na mulher e na criança diante da cabana. As duas representavam a vida que ele havia escolhido. Com elas ele cruzaria as ravinas e colinas nevadas, entraria novamente no bosque em busca de um outro lar, e o encontraria.

Estendeu a mão direita para Angela. Devagar, ela veio até ele. Atrás de Angela, os dois fantasmas de dois amanhãs perdidos, sorriram levemente, antes de se confundirem com a bruma que cercava a todos, e se esvaecerem para sempre.

Roberto de Sousa Causo

Nasceu em São Bernardo do Campo (SP), em 1965, e mora em São Paulo. Escritor de ficção científica e crítico, é autor do romance A corrida do rinoceronte. Também publicou diversos contos em revistas como Playboy e Cult.

Rascunho