Pela tristeza de mãe

Conto de Maria Valéria Rezende
Maria Valéria Rezende, autora de “Recapitulação”
01/04/2008

O pior era a tristeza de Mãe.

Quando o juízo de Vô destrambelhou, Mãe se preocupou um pouco, mas o menino via na cor de lâmina afiada dos olhos dela, vez por outra, um risco de riso, bem cedo ou tardezinha, quando Vô danava a aboiar daquele jeito que só ele. Aboiava à toa, que só seu gado é que obedecia a seu canto e ele não tinha mais gado algum.

Falavam que endoidou quando Vó morreu.

— Era não, diziam outros, foi quando perdeu a última rês, picada de cobra, ele que não sabia de mais nada, só de tanger gado. Por isso agora abóia e responde ele mesmo, mugindo.

— Aboio serve pra quê, sem boi?

Aboiava e mugia, aboiava e mugia, toda madrugada, toda boca de noite. Mãe ria.

— É nada não, só caduquice.

— Ah, bom.

— Caducar não é endoidar não, é só esquecer o que d’ora em vante não tem mais serventia pra vida.

— Ah, bom.

— Lembrar o resto pra quê? Se tirando o aboio e o gado, o resto da vida foi tristeza. Agora é só gozo.

— Ah, bom.

Mãe se preocupava era em saber se ele estava em feição de aboiar ou de mugir, na hora de botar o almoço ou a janta pra ele, se botasse a cuia no cocho, lá no curral, ou o prato dentro de casa, à cabeceira da mesa, como sempre.

Ela gostava de ouvir aboio e mugido de Vô. Sinal de tudo na santa paz, tudo normal. O velho limpo, alimentado, agasalhado. O gado imaginado todo dentro da mente, tantas cabeças pra cada um, quanto quisesse. O menino pensava um touro e ele então existia. Mãe pensava duas novilhas, planos de muito leite, cria, coalhada, queijo.

Qual era o gado da cabeça de Vô ninguém sabia que ele não falava mais nada. Aboiava e mugia, só. Mãe dizia:

— Não muda muita coisa de antes, não. Vô nunca foi de muita fala. O negócio dele era o aboio e as vacas.

Aquele canto dava gosto ainda ouvir, só dele, que ninguém fazia igual. Imitadores houve, muitos, mas que nada! O aboio do velho subia feito rojão, lá pro alto, e depois vinha caindo devagarinho, num vaivém de folha seca.

Folha seca o menino sabia fazer bem, mas era com a bola, um craque. Pra coisa de cantar e falar, nada. Ficava vermelho, gasguito, preferia se fosse mudo de vez. Só quando estava sozinho com Vô no curral, tentava um aboio e essa era a conversa dele com o velho, um modulando daqui o outro de lá. Agora: com os pés ele dava seu recado completo, já tinha feito uma vez uma cobrança de falta que só o Roberto Carlos fazia, deu com o pé descalço de lado na bola, ela saiu rodando feito pião no ar, deu uma volta quase na linha lateral e voltou pro gol, bem lá pra dentro. Ele quis ver, uma vez, um lance de Didi que passaram no tempo da Copa do Mundo, mas tão borrado na tela da televisão que só sabe porque lhe juraram. Didi, o que inventou a folha seca, disseram. Em noite de ventania, o menino sonha que vai ser o Didizinho na Seleção.

A vida ficou sendo assim, uns tempos, em meses e anos o menino não sabia dizer, porque não atentou, mas bastante, que até lhe começaram a nascer uns pêlos por toda parte e a voz começou a variar de guiné a garrote. Nasceu-lhe também vergonha, de quase tudo. Sumia lá pro campinho na várzea, sozinho com a bola, pra longe das moças, ficava treinando. A irmã mangando, ele sonhando ir-se embora sem dar notícia, jogar no Flamengo. Ela só ia saber no dia em que a televisão desse ele fazendo o gol da vitória. No mais, Pai em São Paulo, Mãe dando pro menino um feijão mais reforçado com charque, ele sonhando com a bola e se ocupando cada vez mais no roçado, Vô aboiando e mugindo.

Até a manhãzinha em que Mãe ficou esperando Vô aboiar pra lhe levar o café lá fora, no curral, esperou, esperou e nada. Nada de aboio nem de mugido. Mãe correu, pensando achá-lo caído no chão, doente, ou pior. Não achou ninguém.

— Foi dar uma volta ou teve precisão de ir ao mato. Já vem.

Mãe voltou pra cozinha e esperou, esperou, com a gamela vazia numa mão, a colher de pau na outra, espreitando aboio ou mugido pra localizar Vô e então encher a gamela, mandar o menino levar a ração de cuscuz com ovo, bem quentinha, o café. O menino esperou, esperou distraído com a lembrança do que afinal tinha visto no computador da estação — estação digital, não é de trem não, que arrancaram trilhos e dormentes há muito tempo, embora que o prédio seja o mesmo. Só o que desembarca ali agora é idéia, viajando em onda de rádio, tanta idéia!, amontada em palavras, figuras, sons, que ele antes não podia imaginar.

Ontem deixaram ele sozinho junto da máquina, à vontade pra fazer suas buscas, que já aprendeu muito bem como se faz. Em dois tempos ele achou e apanhou na tela o que já tantas vezes figurava, sem saber bem como era, e viu, mil vezes, meio borrado, enevoado, um filme do tempo de Vô, velho que só, mas dessa vez pôde dizer que viu: Didi em pessoa fazendo uma folha seca. Era mesmo ele, o menino, chutando, igualzinho, sem tirar nem pôr. Sentia, no corpo, nos ossos, nos músculos, nos tendões, que o lance que ele fazia era aquilo mesmo. Bem que ele havia de gostar de se ver, de verdade, chutando a bola num filme, num espelho que fosse, ou mesmo só fotografia parada. Mas ainda não tinha coragem de pedir a ninguém uma coisa dessas, pedir filmagem ao padre, ôxe!, nem muito menos ao deputado que era outro que tinha câmera, pedir espelho só se fosse pra levar nome de maricas, fotografia parada já iam inventar uma namorada pra ele e ninguém fazia de graça.

Mas não, não se ouviu mais aboio nem mugido de Vô naquele dia, nem no outro. Por mais que Mãe e o menino procurassem, que depois o povo todo soubesse e também buscasse notícia dele, ninguém achava nem sinal do velho. Até que o tio caminhoneiro voltou, já perto de São João e disse que tinha ouvido falar de um velho que aboiava que só um anjo e mugia que só um boi pelo meio da feira de Caruaru.

Mãe, aquela tristeza. Então o menino disse que ia, vendeu o par de chuteiras e a bola, Mãe deu o dinheiro guardado pra roupa do São João e ele foi. Foi pensando em procurar Vô numa feira, fácil. Chegou lá, a feira de Caruaru era o mundo inteiro. Ele com vergonha de perguntar, andando, dum lado pro outro, a feira não acabava nunca, a zoada era grande demais, muito grito, alto-falante, mugido. Tudo misturado, não dava pra distinguir aboio nenhum. Cansaço, a chinela de dedo torou, cansaço, vontade de chorar, até que viu o carro de som, chegou perto, tirou o dinheiro do bolso e contou, nem careceu de dizer nada, o homem lhe botou o microfone na mão e pegou o dinheiro todo. Ele ali, dizer o quê?, se Vô não entendia mais nada? Então veio a inspiração, ele suando, vermelho, com medo da voz sair fina, respirou o mais fundo que pôde e soltou a voz num aboio, igualzinho ao de Vô, a voz cheia, firme, forte, que a feira toda silenciou pra ouvir a folha seca descendo devagarinho e tornando a subir.

Maria Valéria Rezende
Rascunho