Poemas de Pedro Marques

Leia três poemas de Pedro Marques
01/01/2013

Eu fundei este mundo de departamentos e amebas
No início era alugado, mandei religar a luz

Desenhei cada processo, cada espécie da empresa,
destino por destino na minha folha de pagamento

Soprei em todos os narizes as crenças e valores
desta máquina que fiz crescer em espiral

Conheço cada pico, cada fossa do empreendimento

Criei à minha semelhança cada líder
— da costela do macaco, a raça dos comandados

Cada formiga sob meus olhos multiplicados,
fiadas na promessa de dirigir este estado de coisas

Meu espírito paira sobre os desígnios, metas e crachás,
o curral de reserva ora lá fora pelo subemprego

Sacerdotes e colaboradores lapidam meu verbo,
todos rezam pelo bem da companhia

Eu sou o Arquiteto, o CEO, o Sinhô da organização
O Rei e seus bobos medrosos da demissão, do Juízo Final

Se o Mercado é por nós, quem será contra nós?

Contemplo as ações subirem da minha obra,
confronto a concorrência, camuflo perdas

Bônus tem que chover na conta do investidor,
tem que pingar na mão do operacional

Deito a consciência na responsabilidade social

Pergunto ao moço do café: “E a vida?”
Ele também é filho do Diabo

A loção salta do frasco de vidro francês
made in Argel,
bate no bigode americano
made in Mexico,
rebate no espelho indiano
e a limpeza ricocheteia
no porcelanato italiano
até repousar no travesseiro
de gansos do Rio Danúbio
em que dorme o ganhador do Nobel

Esse locus amoenus flutua ao som de Mozart
em cruzeiros, resorts e mansões
habitado por gente da grana,
limpo por escravos de Governador Valadares
que choram notícias para as mães
em smartphones falsificados na China

•••

Basta o casal cruzar o meu caminho,
para os corpos jogarem o fogo ao gelo

A mão que vinha audaz não fala mais
e uma língua se esconde noutra boca

Não corro atrás de rango nem de verbo,
sou tipo um Jesus Cristo retornável

Pois não: dou de louquinho e passo reto,
refugiado que sou do global market

Diz bem quem diz que beijo faz milagre:
pra mim, é um espantalho de mendigo

•••

Dom Auau deita e rola e acorda
e se espreguiça em casinha própria

E revira o pote de água tratada
e regurgita a ração balanceada

Cercado de criados e atenção,
às vezes se deita num spleen

Meio humana meio dondoca, sua dor
não encara fila em Pronto Socorro

Nada que uma cagada na praça,
onde dormem os sem maloca,

não cure

•••

Entrada do Éden Supermercado,
o sujo na paisagem

Professor anulado resiste
a ensinar o outro

“Aqui é pra incapaz físico, não mental”
“Menino, assim vovó entorta as costas”

Me mando do “super”
matando a gelada no bico

No seu posto, o irmão mais útil
que o sorriso do vereador

Numa seca que o dia todo não choveu
moeda na sua mão

Dessemelhante do gafanhoto consumidor,
mestre sem apóstolos

“Miguinho, empresta um gole desse mel?”

“Psor, desci a derradeira gota d’ouro”

Pedro Marques

É poeta, músico, professor e ensaísta, doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP e editor do site Poesia à mão. É autor dos poemas de Clusters, do ensaio Manuel Bandeira e a música e organizador de Antologia da poesia parnasiana brasileira e de Olegário Mariano — Série essencial.

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