Poemas de Pedro Lucas Bezerra

Leia os poemas "Angelus", "As quatro canções sérias" e "Sobre o dissenso"
Pedro Lucas Bezerra, autor de “Trem fantasma”
01/09/2021

Angelus

Caminha comigo um
a procissão
caminhe comigo
sobre as pedras verdes

conheça comigo
a mão gelada de manhã cedo
conheça também
o gás passando devagar
por suas narinas
até aniquilar a sua existência
e a de mais três irmãos

conserve comigo
este pássaro de asas quebradas
cheire comigo esse pouco de cola

vamos comigo às montanhas
lá os anjos me aparecem
tocam sinos enquanto bebem
disparam flechas contra os lobos
acordam cedo
e despejam cal nas árvores

As quatro canções sérias

Meus olhos saltam das órbitas
e descem até a garganta:
é com eles que busco ouvir
a música que sai
do oboé no seu estômago

aproximo meus olhos
e minha boca
de sua barriga tísica
onde as covas da cintura
cavam uma nota funda
no silêncio
o som do seu oboé
invadindo a orquestra

ouço a massa disforme
do seu clarinete
em cada perna
você pisa nas cortinas
era melhor que não sujasse
os pés no lodo da montanha

os mellotrons na sua cabeça
seu cabelo tocando acordeon
me apontaram os microfones
dos seus pés
estendidos na praia
lá em cima
muito longe
conto um a um os fios elétricos
que você escondeu nos nós dos dedos

na sua voz precipitada
ouço a fábula de mil amplificadores
ligados junto a uma pedra
onde todas as noites
vêm dar as serpentes
cantando maldições

Sobre o dissenso

As azeitonas eu não comi
deixei pra você ver
que eu não tinha comido
e sobra mais pra você
que talvez prefira elas escuras

você me comove
enquanto trabalha
na sua roca de fiar

quase fere um dedo
aquele da maldição

eu fico calado
não espero nada
imagino uma saraivada
de gritos
despencando numa manifestação
numa rua eivada de
revolucionários
ninguém armado
a não ser pelas pequenas bombas
plantadas na história

é possível criar binóculos
para enxergar além da rua
o espetáculo renascido
das ruas com eco
enquanto o povo
passa sem fogos de artifício
no meio dos carros
retorcidos, ferragens
bicicletas com luzes piscando

eu coloco na sua boca
o meu dedo indicador
você morde a ponta
e nem dói

nas esquinas dessas ruas
há um cão que vela os
ratos
eles sabem
salvo exceções
como é oco dentro de tudo

Pedro Lucas Bezerra

É poeta e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Autor de Trem fantasma (Quelônio, 2021).

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